Em 1985, nos subterrâneos do Grand Cafè de Paris, algumas dezenas de pessoas assistiam a primeira projeção pública paga da história do cinema. Cento e vinte anos depois, aquela que, segundo seus criadores, seria “uma invenção sem futuro”, se consolida como um dos maiores fenômenos culturais de todos tempos, desempenhando papel fundamental no imaginário coletivo. Criado com fins científicos e de entretenimento, é principalmente partir do momento em que o cinema adquire seu caráter artístico, tornando-se produto de reflexão e crítica e experimentação estética, que consegue estreitar sua relação com o espectador e desenvolver seu potencial enquanto experiência subjetiva. De frente para a tela, a diversão ganha uma nova dimensão, aquela na qual nos vemos implicados e tocados pela fantasia de um outro que cria.
A arte, nos diz a Psicanálise, “oferece satisfações substitutivas para as mais antigas e mais profundamente sentidas renúncias culturais.” Remexendo no desconhecido, no intocado, criando algo novo, o artista materializa suas fantasias de maneira disfarçada e universalizada, e ao usufruirmos destas conseguimos, indiretamente, ter contato com nosso próprio mundo interior. A satisfação aqui em jogo se aproxima daquela que experimentamos no sonho – nosso “cinema particular”. Essa possível analogia mostra como a atividade cinematográfica, mais do que qualquer outra forma de manifestação artística, se presta como alegoria da dinâmica psíquica, na sua relação com o inconsciente.
Freud fala dos sonhos como produções que, através da satisfação alucinatória, eliminam estímulos que perturbam o sono. Ou seja, sonhamos para não acordar. A ficção onírica trabalha, via de regra, a serviço do princípio do prazer, aquele que visa a satisfação em prol do equilíbrio e evita o desprazer. Porém, alguns sonhos fogem dessa finalidade, levando ao susto, a angústia, ou a qualquer sensação da ordem do insuportável, nos fazendo despertar. Afirma Freud, são justamente esses sonhos que podem nos ensinar mais sobre nós mesmos ao nos fazer deparar com nossos próprios enigmas.
Talvez possamos pensar que, assim como os sonhos que protegem o sono, alguns filmes nos permitem experienciar essa satisfação alucinatória visando nada mais que a manutenção de um estado de prazer. Filmes que servem não apenas como subterfúgio da realidade, como fuga psíquica, mas que nos oferecem uma maneira segura, sem compromisso de realizarmos desejos inconscientes. Por outro lado, existem aqueles filmes que nos tocam, incomodam, que causam desconforto, que angustiam, que nos remetem a nossas próprias questões e nos colocam perguntas sobre nós mesmos.
Seria essa uma das diferenças fundamentais entre o chamado cinema de entretenimento e o cinema de arte? Entre aquele que consola e conforta, e aquele que causa e questiona?
Não nos detendo nessa discussão, o fato é que quanto mais autêntica for a obra cinematográfica, ou seja, quanto menos produto de fórmulas prontas e mais da singularidade e da verdade daquele que cria, mais valor ela terá enquanto experiência subjetiva.
O valor dessa experiência, o que nos oferece esses filmes, é a possibilidade de sairmos da passividade e conforto do prazer e do gozo e nos colocarmos ativamente em uma troca com esse produto da fantasia alheia; onde assistimos e somos assistidos, olhamos e somos olhados, e travamos um diálogo silencioso que continua mesmo depois que as luzes acendem.
Dizia Jung, “Quem olha pra fora, sonha. Quem olha pra dentro, acorda.” Pois são esses os filmes que nos fazem tirar os olhos da tela e olhar para dentro… São esses os filmes que nos acordam, que não nos deixam sonhar.
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