“O inocente é o mais perigoso. Ele tem a raiva maior e age de forma mais destrutiva num relacionamento, porque acha que está com a razão. Perde o senso de medida. O culpado está sempre mais disposto a ceder e a reparar. Via de regra, a reconciliação fracassa não pelo lado do culpado, mas do inocente.”
– Bert Hellinger
Certa vez uma amiga me disse que escrevo em um nível que a maioria das pessoas nem chegou a contemplar, que tenho uma maneira romântica de olhar o mundo. Eu achei graça, mas não esqueci suas palavras, até porque ela não foi a única a achar que tenho uma maneira peculiar e deveras romântica de olhar o mundo. Na época entendi como se fosse um elogio, acredito que foi esse o intuito, mas hoje em minha concepção de mundo, já não considero um grande elogio.
A maneira como vejo o mundo, as exigências que me faço, o que sonho para mim e para aqueles que amo é muito diferente da realidade, eu sempre soube disso. Reconheço que possuo uma ingenuidade da qual muitas vezes tentei me libertar e nem sempre fui bem sucedida. Em desespero, resolvi apelar para os florais, o meu pedido para a “floraterapeuta” foi: “- quero ser mais cética, quero parar de sonhar com um mundo que não existe” (e sim, quero ser cética que ainda acredita em florais). Eu duvido que alguém já tenha pedido algo parecido e meu tom não era de vitimização, era apenas uma constatação de como quero libertar-me de uma espécie de inocência tola que não já não deve pertencer aos adultos.
Explico:
Com certeza é melhor acreditar demais nas pessoas do que viver desconfiada, mas ser cético é diferente de ser desconfiado e é também mais saudável. Além do mais, existe um tipo de inocência que cega, que não é natural dos adultos, que coloca o inocente em risco. As crianças nasceram inocentes, acreditando em palavras, confiando em todos. Ao longo do nosso percurso a maturidade deve nos presentear com uma boa dose de ceticismo e isso não é ruim, é bom desenvolver um olhar mais crítico daquele que aprende a observar. Esse é o processo orgânico do crescer, evoluir, amadurecer, o nosso cérebro é de certa maneira programado para tanto, ou então não existiria diferenciação entre ser criança e ser adulto.
Estive recentemente em um evento de literatura, o Pauliceia Literária, organizada pela AASP e dentre tanta coisa boa, uma das melhores mesas foi a de dois biógrafos e historiadores – Lira Neto e Mário Magalhães. A maneira entusiasmada com que eles falavam de seus trabalhos foi contagiante (até me deu vontade de escrever uma biografia). Um deles disse “o biógrafo deve ser cético, precisa buscar provas de fontes diversas e não parar enquanto não tiver prova suficientemente convincente. É preciso duvidar, sempre!”. E ouvindo isso cheguei a conclusão que no momento não vai dar para escrever uma biografia pelo simples fato de que eu ainda não desenvolvi esse ceticismo todo.
Recentemente vivi um conflito que me despertou para essa deficiência em mim. E engana-se quem acha que me senti a grande vítima da situação, os conflitos são ótimos para dosar nosso auto-conhecimento. Não, não tem nada de belo em ser inocente quando essa inocência pode te colocar em risco e te expor a dramas que você já não deseja mais viver. Lembrei-me da inocência da Chapeuzinho Vermelho que mesmo avisada pela mãe, distraída adentra a floresta, conversa com o Lobo Mau e mais tarde é devorada por ele. Não existe saúde alguma nesse tipo de inocência, é preciso desenvolver um olhar mais aguçado para evitar as (muitas) armadilhas que encontramos pelo caminho.
Ludibriar é um verbo transitivo direto, é uma ação que não acontece sem a relação sujeito-objeto, só ludibria quem tem alguém que se permite ludibriar. Acontece que em uma cultura que preza pela vitimização só leva a culpa o sujeito da ação, o lobo mau, o vilão. Mas no fim do dia, na vida real, na lida do eu-com-eu, onde não existe o julgamento do que a sociedade acha certo ou errado, tampouco existe vilão e mocinha, o que existem são apenas os fatos: enquanto um mente o outro acredita (ou finge que acredita, ou quer acreditar), mas não podemos nos enganar, só existe uma maneira de conhecer alguém de verdade e é sempre através das suas ações.
Seria bom viver em um mundo onde o que vale é a palavra, mas estamos muito longe disso. Os fatos da história, muitos dos políticos e tantos outros acontecimentos nos fazem recordar de que palavras muitas vezes são vazias e falham ao mostrar o caráter de um sujeito. É certo que incoerência existe em todas as partes, cada dia mais e a cada dia mais existem belos discursos de gente que não os coloca em pratica. E é verdade que ninguém consegue ser 100% coerente, mas aproximar o andar do falar é uma missão que todos nós deveríamos nos propor nessa existência. Mas, enquanto houver incoerência no mundo (e sempre haverá) e para evitar constrangimentos e dramas, é preciso ser cético. Os fatos comprovam, as atitudes denotam e o que uma pessoa diz, é nada mais apenas o que ela diz.
Portanto livremo-nos das máscaras do bonzinho, da vítima que acreditou demasiadamente, da donzela indefesa, pois mentir pode ser ruim (e as pessoas mentem por diversos motivos), mas se deixar enganar por palavras também não é uma atitude muito salutar; e deixemos a inocência pura, de quem acredita demais, para as crianças, ou quem sabe para a maneira como contemplamos a natureza, para os tratamentos alternativos, para acreditar nas utopias. Enfim, tem muita coisa para crer com certa inocência, nenhuma delas inclui os relacionamentos inter-pessoais. Para os relacionamentos de qualquer tipo, é preciso ter perspicácia e esperteza; é preciso afinar o olhar, aprender a observar. É preciso adquirir um quê de São Tomé, aquele que vê para então crer.
Pois, repito, não importa o que alguém diga, as atitudes sempre, sempre terão mais força e veracidade do que as palavras.
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