Por motivos que compreenderão, este texto poderá assumir particular importância para os psicólogos dinâmicos (ou psicanalíticos) mais jovens e menos experientes, não deixando de levantar pontos de reflexão que poderão também interessar aos mais experientes.
A argumentação apresentada fundamenta a posição pessoal do autor sobre esta matéria, sendo nessa medida que deve ser recebida. Contudo, tratando-se talvez do mais vasto e atual tema psicanalítico, será aqui apenas parcialmente abordado. Muito mais há para dizer sobre ele.
Os estados-limite (os border) são predominantemente definidos de uma forma simplista e algo enganosa, como sujeitos cujo funcionamento mental e relacional oscila entre a neurose e a psicose. É esta esta mal-interpretação, ou esta interpretação notoriamente insuficiente e naive, muitas vezes academicamente difundida, dos contributos dos autores consagrados que investigaram aprofundadamente estes casos — tais como, por exemplo, Otto Kernberg, Jean Bergeret ou André Green –, que faz com que muitos psicólogos fiquem à espera do dia em que lhes entre pela porta do consultório um aparatoso estado-limite (um borderline), apresentando um funcionamento em registo neurótico, pautado por insidiosos acessos delirantes, na forma de verdadeiras descompensações psicóticas. É claro que, regra geral, digamos assim, ainda hoje lá estão, à espera.
Entretanto, enquanto esperam, é provável que tenham um bom número de estados-limite sentados no sofá em frente a si, os quais são tomados por neuróticos, quer porque a sua história de vida se encontra destituída da exuberância patológica esperada (os episódios psicóticos), quer também porque frequentemente confundem os funcionamentos organizados através de mecanismos de defesa de natureza pré-edipiana, baseados no evitamento do conflito (estados-limite), com os funcionamentos organizados através de mecanismos de defesa verdadeiramente conflituais e, como tal, edipianos (neuróticos). Neste estado de coisas, a frequente ausência de deslize técnico, da neurose para o estado limite, faz com que ainda hoje a questão das “reações terapêuticas negativas”, que outrora tanto intrigaram Freud, represente um tema em aberto e atual.
Mas é, efetivamente, a procura de sintomas psicóticos no estado-limite, a principal fonte de confusão diagnóstica, entre estes e os neuróticos. Não apresentando sintomas psicóticos evidentes, os estados-limite são frequentemente tomados por neuróticos. Na verdade a questão da sintomatologia psicótica nos estados-limite é baseada em casos raros, cujo diagnóstico é sempre questionável. Não obstante a exceção possa fazer aqui a regra, contudo, confundir a exceção com a regra, que é o que acontece, é obviamente problemático.
André Green, por exemplo, no âmbito dos processos que designa a titulo do “trabalho do negativo”, considera que o recalcamento, que é a defesa prototípica do funcionamento mental dito normal-neurótico, pode sofrer variações distintas, sendo a sua ação substituída pela de outros mecanismos mais primitivos. Assim, nas neuroses o mecanismo de defesa central, ao qual os restantes se subjugam, é o recalcamento; nas psicoses é a exclusão que ocupa este lugar central; e nos estados-limite é a recusa (recusa da realidade psíquica, interna, sempre associada às defesas pela realidade externa e à clivagem entre o interno e o externo). O que este autor considera é então que existem três grandes estruturas de funcionamento mental: as neuroses, as psicoses e os estados-limite. Cada estrutura de funcionamento mental é uma organização estável e definitiva, estruturada através de mecanismos que lhe são próprios, claramente distintos dos mecanismos das outras estruturas.
Deste modo, considerar que existe um funcionamento neurótico (organizado pelo recalcamento) e um funcionamento psicótico (organizado pela exclusão), a operar à vez, dentro de um funcionamento estado-limite (organizado pela recusa), é aparatosamente confuso, para não dizer totalmente disparatado e absolutamente incoerente, já que o recalcamento, a negação e a recusa não podem operar simultaneamente no mesmo sujeito, nem à vez. Para assistirmos à ação destes três mecanismos de defesa centrais, necessitamos, obviamente, de pelo menos três sujeitos, e não de um. Ou não?
Mesmo Otto Kernberg, que por ventura é, como saberão, um dos principais responsáveis pela disseminação do gênero de ideias em debate (a sintomatologia psicótica nos estados-limite), deve ser aqui adequadamente interpretado. Este autor refere pois que os estados-limite se caracterizam pelo recurso a mecanismos de defesa primitivos, mas não diz que estes mecanismos são exclusivamente psicóticos e exuberantes, considerado sim que geralmente eles operam subtilmente, a par da manutenção da prova da realidade, pois os estados-limite, contrariamente aos psicóticos, não perdem a realidade.
Mas é precisamente neste ponto, a manutenção da prova da realidade, que os estados-limite se assemelham aos neuróticos, com os quais são frequentemente confundidos, não só devido a esta semelhança, mas também porque os mecanismos de defesa primitivos a que recorrem, regra geral e a bem da verdade, não apresentam aquela esperada exuberância psicótica.
Jean Bergeret, para dar outro gênero de exemplo, considera que a instância do aparelho psíquico que domina no funcionamento mental dos estados-limite não é o super-ego, como no caso das neuroses — pois nos estados-limite, para além da declarada fragilidade do ego, o super-ego não chega a constituir-se –, mas sim o ideal de ego, que é um herdeiro direto do narcisismo, declarando-se então uma lógica em que o objeto é apreendido na esfera da relação dual (especular e dependente), devendo antes demais servir funções de salvaguarda do narcisismo do sujeito. Neste âmbito o objeto é então convocado para desempenhar as funções de ego e super-ego auxiliares. Esta relação dual (especular) situa-se naturalmente aquém da constelação triangular edipiana. Efetivamente, o funcionamento mental dos estados-limite, diferentemente do funcionamento mental dos neuróticos, não é organizado pela culpa-castração (agenciadas por um super-ego dominante), mas sim pela angústia de perda de objeto.
Regressando a André Green, a folie privée (loucura privada) do estado-limite, sendo algo que efetivamente traduz a proximidade de um núcleo psicótico, revela-se apenas na intimidade da relação transferencial, o que não significa que aí se exiba de modo exuberante e imediatamente identificável e muito menos delirante. Lá fora, contudo, maioritariamente estes sujeitos são, digamos assim, quase como os outros, capazes de assumir as suas funções e responsabilidades em sociedade, sem apresentarem qualquer tipo de exuberância patológica evidente.
Em todo o caso, a folie privée traduz-se numa encenação transferencial em que o que se revela é o desespero associado a uma trama sado-masoquista, que visa organizar a relação com um objeto de intensa dependência, para não o perder (angústia de perda de objeto). Nesta trama sado-masoquista o objeto é paradoxalmente apreendido, quer como ausência insuportável (dada a perda ser uma ferida sempre aberta), quer como introsividade intolerável (dada a intolerância aos interesses pulsionais divergentes, próprios do objeto). Eis então o dilema border, polarizado na relação de dependência com um objeto que é procurado como uma “segunda pele”, onde o sujeito possa organizar a sua experiência emocional, estando este intuito obviamente destinado ao fracasso.
Esta folie essentielle du moi (loucura essencial do eu), assume pois uma trama bem distinta da trama efetivamente psicótica, na qual o objeto não é procurado e nem sequer se encontra em causa, já que o psicótico, digamos assim, através do delírio e da alucinação, renasce de si mesmo e reconstitui-se radicalmente como um sistema fechado, declaradamente auto-suficiente, do ponto de vista do funcionamento mental.
Efetivamente, para além do que já foi dito, os estados-limite apresentam uma polissemia sintomática estonteante, que não versa propriamente sobre delírios e alucinações. Não os querendo excluir (os delírios e as alucinações), repito-me, eles configuram efetivamente casos raros, cujo diagnóstico é sempre questionável. Por outro lado, em caso efetivo, sendo sintomas raros, devemos ter em conta que se a exceção faz a regra, a primeira (a exceção) não pode nunca ser confundida com a segunda (a regra).
Por fim, a polissemia sintomática do estado-limite abarca efetivamente uma diversidade vasta e multifacetada, de natureza não psicótica, nem neurótica, mas sim dotada de características definitórias de um estatuto estrutural próprio: a instabilidade afetiva acentuada, as fobias (enquanto condições associadas ao desamparo-dependência), os ataques de pânico, a hipocondria, as adições, as condições psicossomáticas, as depressões, os agires (o acting-out, mormente sexual e/ou agressivo, auto ou hetero-dirigido), etc.
Sendo certo que os sujeitos sobre os quais nos debruçamos aqui, representam uma percentagem altamente significativa da população clínica (facto que aparenta passar frequentemente desapercebido); tendo em conta a argumentação apresentada e a sintomatologia finalmente descrita, resta agora olhar atentamente para aqueles que, dentro dos nossos consultórios, se sentam no sofá em frente a nós.
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