Por Octavio Caruso
A Partida (Okuribito – 2008)
O que morre é o corpo, desaparece nas labaredas da cremação ou é dissolvido de volta à mãe terra. Sobrevive o legado, as boas atitudes que continuarão inspirando próximas gerações, o sentimento passado e que, de tão sincero, continua a ressoar em todos aqueles que foram tocados por sua presença. Como aceitar que a máquina responsável por essa infinidade de sensações, após seu desligamento, seja manipulada com desleixo por estranhos? Daigo (Masahiro Motoki) precisava aprender essa lição, quando aceitou sobrepujar seus preconceitos e medos, voltando ao trabalho após uma primeira experiência traumática. Ele sonhava em encantar o mundo com seu talento como violoncelista, mas teve que se contentar em ser o responsável por preparar os mortos para o velório, uma função que sua esposa inicialmente despreza.
O sensível roteiro de Kundo Koyama, que estreava em longas, merece ser ressaltado. São muitas as metáforas espalhadas no filme, como os salmões que, como Sísifo, seguem lutando para atravessar a correnteza de um rio, sabendo que todo o esforço será retribuído eventualmente com a morte. Caso não houvesse a finitude, não seríamos capazes de valorizar essa experiência mágica. O diretor Yojiro Takita não evita pesar sua mão nos momentos emotivos, mas nunca soa gratuito ou forçado. Ele consegue tratar um tema complicado com extrema leveza, focando nas modificações internas que ocorrem no rapaz. O trabalho de Daigo como músico é celebrar a Arte daqueles que já morreram, eternizando em suas melodias o trabalho e a vida de artistas que ele sequer conheceu pessoalmente, exatamente o mesmo que acontece quando ele se encarrega de embelezar um cadáver, reverenciando em gestos delicados e pura gentileza aquele corpo estranho que outrora amou e foi amado. A alegoria é belíssima, quando ele percebe que seu sonho não foi anulado pelos percalços da vida, apenas se intensificou. E essa constatação é mostrada em uma montagem, emoldurada pela linda trilha sonora de Joe Hisaishi, que alterna sua ritualística rotina profissional com algumas cenas suas tocando seu querido instrumento na solidão do topo de uma onírica colina.
O conflito que o protagonista carrega por toda a vida, o afastamento precoce de seu pai, um borrão em sua memória, pode ser visto como o elemento menos interessante na trama. O que realmente importa é a evidência de uma sociedade que está sendo enterrada pelo tempo, com suas tradições sendo desrespeitadas. A casa de banho que se mantém apenas pela disposição de sua dona, o progressivo desinteresse do público pela música clássica, símbolos de decadência. E, por incrível que pareça, o jovem que foi atraído por engano ao trabalho, acaba se tornando o guardião desse rico passado, o responsável por guiar essa tocha para a próxima geração. Todo o resto é eficiente melodrama, mas essa bonita mensagem principal é que opera a mágica da multiplicação de lágrimas, o elemento que mantém o filme na memória de quem assiste.
Carioca, apaixonado pela Sétima Arte. Ator, autor do livro “Devo Tudo ao Cinema”, roteirista, já dirigiu uma peça, curtas e está na pré-produção de seu primeiro longa. Crítico de cinema, tendo escrito para alguns veículos, como o extinto “cinema.com”, “Omelete” e, atualmente, “criticos.com.br” e no portal do jornalista Sidney Rezende. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, sendo, consequentemente, parte da Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica.
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