Júlia Guglinski

O lado obscuro dos cães. Eles também tem dias ruins e direito a escolhas.

Todos os dias lemos matérias em jornais sobre os pets em nossa vida, e nos ligamos somente ao lado bom dos nossos peludos. Porém, lembrando que se tratam de seres sensitivos, emocionais e instintivos, são também dotados de mau humor e descontroles hormonais. Cães são fiéis, amigos, protetores, pacientes e nos perdoam por tudo? Sim e….. Não! Elevamos nossos amores de focinho gelado a um patamar dos deuses, mas quando batemos de frente com os problemas que nos causam, alguns gravíssimos, esquecemos da doçura e entramos em um quarto escuro cheio de dúvidas, questionando em que momento o filhotinho fofo se tornou um Diabo da Tazmânia, e pior, sem dar conta de que o erro provavelmente foi nosso. Resultado: Abandono, maus tratos ou indiferença.

Cães possuem uma linha de estratégias complexa e dividida em regras que ainda são bastante estudadas. Alguns são possessivos, imprevisíveis, reativos, oportunistas, ciumentos, hiperativos, ou seja, entram com uma lista extensa de defeitinhos sub humanos. Se pararmos para observar nossos fiéis amigos por um outro ângulo que não seja a fofura, percebemos isso. Por trás de algumas atitudes bonitinhas e agradáveis, pode haver uma negociação da parte deles, nem sempre, mas pode. Comumente ouvimos nas consultas comportamentais: “faço tudo pelo meu cão e mesmo assim ele não me respeita!”. Defina” respeito”. Defina “fazer tudo”. Dar ração, biscoitos, carinho, passeios, brincadeiras intermináveis é dar tudo que ele precisa? Respeito é ter um cão totalmente ao seu dispor sem um pingo de dignidade? Pelo meu ponto de vista, não! Há uma infinidade de raças no mundo, todas projetadas pelo que queremos delas, mas acima disso não são robôs e carregam um instinto muito aguçado. Raças consideradas mais submissas, como as de companhia por exemplo, talvez sejam menos complexas de se concluir uma teoria sobre elas. Até onde se sabe, quando um cão é definido como de luxo, não está relacionado a nenhuma atividade criada para ele, sendo assim, se tornam mais flexíveis. Já os de caça, proteção, pastoreio, tração e guarda, por adotarem uma postura mais independente e persuasiva, são considerados os possíveis problemáticos aos olhos dos leigos. Claro, não é uma regra e sim uma estatística. Quando se cria alguma coisa, podemos modificar o que queremos e podemos para obter o melhor resultado, e com os cães não seria diferente. Um cão de guarda em tese, jamais vai deixar de ter seu instinto apurado, por mais intromissão que exista de nossa parte. Obviamente oscilando entre bons e péssimos exemplares genéricos. Alguns mais ativos e intensos e outros menos, mas a arte de proteger sua matilha, é nata. Um caçador pode ter outros animais, de outras espécies como amigos, vemos isso em vídeos e fotos. Foram socializados desde filhotes, essa é a chance de sucesso para uma boa convivência, no mais, com o tempo passando e o animal se tornando adulto sem a devida socialização, essa esperada harmonia vai deixando de ser um sonho concreto e se tornando uma utopia. Cães produzidos para trabalho, carregam em sua genética esse amor pelo que fazem, ou pelo menos faziam. Levam consigo uma memória genética bem definida. Digo genética, porque muitos donos se atrapalham na hora de imaginar como isso funciona. Acham por exemplo, que um filhote de Border Collie nascido em um apartamento, nunca soube, nunca viu ou praticou, portanto nunca terá a ânsia de trabalhar, seja pastoreando ou se movimentando freneticamente em busca de algo que não foi apresentado a ele. E isso é um erro. Os cães não agem apenas pelo que vivenciam e sim pelo que corre em suas veias desde aqueles tempos que mencionei no começo. Solte um border collie de apartamento junto a ovelhas e verá o espetáculo acontecer. Os chamados de independentes, levam essa denominação porque ao longo da história, precisaram se virar sozinhos para conseguir sobreviver, de fato cães rotulados nessa categoria são mais individualistas e menos submissos, com uma índole quase felina. Os chamados de anti sociais carregam a má fama de menos efusivos, mas esquecem de analisar o motivo. Onde, como e para que foram criados. Independente da beleza e estrutura de um cão, as pessoas deveriam considerar fortemente o temperamento de cada raça antes de levar para casa. “Cada pé tem o sapato certo” já dizia o ditado.

Esses animais, acima de tudo, testam os humanos. Alguns disfarçam essa tendência natural com sutileza, e fica complicado perceber. Mesmo os cães mais submissos tentarão um lugar ao Sol se houver uma oportunidade. Receber uma lambidinha na mão, pode significar carinho, mas também um pedido camuflado. Eles carregam toda uma linguagem corporal que passa despercebido pela maioria, mas que se pudessem ser enxergadas por nós, tudo ficaria mais fácil. Uma orelha postada diferente, uma pata em uma posição raramente vista, um olhar de lado com a boca fechada, ou atento com a boca aberta, um suspiro, bocejo, cauda em pé, abaixada, de lado, balançando ou não e mesmo assim, balanços diferentes, que poucos decifram mesmo. Não é fácil. Cauda balançando nem sempre é alegria, cachorro de boca fechada pode ser um perigo, uma pata erguida pode indicar uma espera por algo que ele ainda não entendeu.

Seu amigo de quatro patas pode sim te morder, podem teimar, eles fogem e alguns não retornam, podem se entediar, entrar em depressão mesmo recebendo todos os mimos, porque de alguma maneira tem um erro na condução da sua rotina. Uma falha na educação ainda não estabelecida, negligência na hora de impor as regras, falta de interesse nos atos desse animal, nos sinais que ele dá, na rotina que ele recebe. Isso tudo se transforma em um caos interior e esse bicho vai dar problemas. É encantador viver ao lado de um cão, o amor que recebemos e a devoção deles quando o ciclo está perfeito em sua cabeça complexa é fantástico. Entretanto, compreender que uma nuvem negra pode pairar de vez em quando em torno de seus atos caninos, irá reforçar ainda mais o laço entre ele e sua família.

Imagem de capa: Soloviova Liudmyla/shutterstock

Júlia Guglinski

Treinadora e comportamentalista de cães. Atriz de teatro, cantora e compositora.

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Júlia Guglinski
Tags: cães

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