Os regimes ditatoriais há muito envergonham a humanidade. Há alguns anos, precisamente a partir de 1976, a Argentina passou por esse vexame.
Nesse tempo, um jovem padre jesuíta teve que escolher entre três caminhos:
Primeiramente, ele poderia aliar-se à ditadura, valendo-se da via escolhida por grande parte da Igreja argentina.
Em segundo lugar, poderia declarar-se frontalmente contrário à ditadura militar que se instalara em seu país, colocando em perigo não só a sua vida como as vidas dos integrantes da ordem religiosa pela qual era responsável.
Mas havia ainda uma terceira via. Esse padre poderia, valendo-se de superior perspicácia, silenciar-se, aparentando neutralidade aos generais, e propiciar o salvamento de dezenas de vidas que estariam sob a mira do regime, acusadas de subversivas e comunistas.
Ele escolheu a terceira opção.
Trata-se do argentino Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco. A história desse período de sua vida é narrada no livro “A lista de Bergoglio“, escrito por Nello Scavo, publicado pela Paulinas Editora.(No Brasil, o livro é editado pelas Edições Loyola) O prefácio é do pacifista e ativista argentino Adolfo Pérez Esquivel, ganhador do Nobel da Paz em 1980. O prefaciador, um dos grandes perseguidos pela ditadura argentina, afirma: “Bergoglio contribuiu para ajudar os perseguidos“.
O livro traz diversos depoimentos de pessoas que foram salvas pelo Papa Francisco, revelando, ainda, singularidades sobre a vida do Pontífice, enquanto discorre sobre as barbáries praticadas pelos militares, descrevendo detalhadamente as torturas a que eram submetidos os presos políticos.
A título de exemplo, menciono aqui o militante uruguaio Gonzalo Mosca que, em 1977, ativista de esquerda, era procurado pelos militares argentinos e seria morto ali mesmo na Argentina ou mandado para o país de origem onde seria morto pela ditadura de lá. Um conhecido de Bergoglio lembrou-se dele e solicitou sua ajuda. Mesmo desconhecendo o Mosca, Bergoglio prontificou-se a ajudar. Recebeu-o em Buenos Aires e transportou-o, em seu carro, por mais de 50 quilômetros, até a Casa San Miguel dos Jesuítas, onde este ficou escondido até que Bergoglio organizasse a rota de sua fuga do país.
Ao lado dessa extrema generosidade, o cavalheirismo. Alicia Oliveira, a primeira mulher a tornar-se juíza na Argentina e que passou a ser perseguida pela ditadura militar e foi despedida do cargo, afirma: “Fiquei sem emprego. Quando soube que me tinham despedido, Jorge enviou-me um esplêndido ramo de rosas”.
Sergio e Ana, casal que também foi salvo por Bergoglio, eram voluntários em uma comunidade de extrema pobreza, em Buenos Aires, e recebiam recorrentes visitas de Bergoglio. Sergio recorda que:“Lembro-me de quando Jorge ia à minha barraca de chapas e de terra batida. Ficava alguns dias em retiro espiritual. Era um daqueles momentos que se percebia que ele não era pessoa de conversas e leituras teológicas debaixo de uma ventoinha. Era um homem de missão. Ouvia os pobres, observava-os na sua miséria e nos ímpetos. Mergulhava na sua realidade, no sofrimento das pessoas, entrava na profundidade dos seus corações para, depois, voltar a subir transmitindo a sua mensagem de esperança.”
O livro consegue elucidar ainda toda a contradição criada com relação a ter ou não o então padre Bergoglio entregue dois de seus subordinados à ditadura, ficando cabalmente evidenciado que o atual papa não só não entregara os padres como agiu de modo decisivo para a libertação destes, solicitando audiências ao general que os mantinha cativos e ameaçando denunciar tal situação ao Vaticano.
No mais, revela um “homem-orquestra“, como citado por Juan Scavonne, amigo do Papa e um dos expoentes da Teologia da Libertação: “homens como ele, no sentido de que podem tocar vários instrumentos de uma só vez“. E prossegue recordando que certa vez, Bergoglio “escreveu um artigo à máquina, depois, lavou a roupa interior, depois acolheu um fiel para uma conversa de direção espiritual“.
A personalidade do homem cujos olhos penetram a alma do mundo não foi forjada no silêncio dos monastérios ou na leitura exaustiva dos teólogos. O livro mostra que ele se fez nas batalhas cotidianas, sempre ao lado dos fracos e oprimidos. Sempre a serviço dos menores.
Quem cala nem sempre consente. Os olhos, não as palavras, são o espelho da alma. E os atos, estes sim, refletem a força de nossos ideais. Calar e agir: esta foi a decisão de Bergoglio que nos garantiu a preservação da vida de tantos, incluindo a dele, a do nosso amado Papa Francisco.