Por Mia Couto
Do original: Ensaio sobre a Convenção sobre os Direitos da Criança: Engravidar o mundo de futuro
“O melhor prémio que tive enquanto escritor foi-me dado por uma criança”
Maputo, 10 de Dezembro de 2014 – O melhor prémio que tive enquanto escritor foi-me dado por uma criança. Por um menino que teria uns 9 anos de idade. O pai tinha-o levado a uma sessão de lançamento do meu livro “O gato e o escuro”.
A obra foi apresentada como sendo um “livro para crianças”, apesar da minha resistência em aceitar que alguém escreve “para” crianças. O facto é que o menino ali estava, à entrada do grande salão, com um exemplar debaixo do braço. O pai pediu-me que assinasse o livrinho antes da sessão de lançamento porque o menino, o Manuel, tinha que se deitar cedo. Ajoelhei-me junto ao Manuel e fiz umas tantas perguntas idiotas que os adultos normalmente fazem quando acreditam que estão a falar com crianças. O menino olhou-me desinteressado e quase desapontado: eu era igual a todos os outros, os que, vezes sem conta, já lhe haviam feito as mesmas perguntas. Coloquei-lhe então uma outra questão:
– Este livro é sobre o medo do escuro. Será que tu tens medo?
Pela primeira vez ele me olhou nos olhos. Demorou a reagir e respondeu com uma pergunta:
– E tu tens medo do escuro?
Disse-lhe que sim. Ele gostou da sinceridade, deu meia volta e quando já se afastava conduzido pela mão do pai, ele parou e disse-me à distância:
– Não tenhas medo. O escuro apenas é feito das coisas que nele colocamos.
Disse aquilo para me reconfortar. Mas ele apenas recitava uma frase que eu tinha escrito no livro. O facto de um menino ter citado uma frase minha como se fosse algo da sua autoria foi talvez o maior dos prémios literários que tive. Nunca mais esquecerei esse momento.
Falo deste episódio para chegar a um outro ponto de partida: quase todos nós deixamos de saber falar com as crianças. Primeiro, pela raridade do momento: as poucas vezes que a elas nos dirigimos é para lhes falarmos. Não é para falarmos com elas. Essa ausência de diálogo tem uma aparente justificativa: as crianças, pensamos nós, pouco sabem e o que sabem, sabem mal. Não são ainda pessoas. São um projecto de pessoa. Olhamos para baixo quando falamos com elas. Como se elas fossem incompletas e estivessem à espera de legitimação para serem tratadas como sujeitos. Até esse reconhecimento de idade elas não são senão objecto da nossa atenção, mesmo que essa atenção seja positiva.
Em segundo lugar, não falamos com elas, porque o conteúdo da nossa “conversa” com as crianças resume-se a três ou quatro perguntas sempre iguais:
– Como te chamas?
– Quem é o teu pai? Ou a tua mãe?
– Em que escola andas?
– O que queres ser quando fores grande?
Esgotadas estas perguntas, resta um vazio. A razão deste vácuo não está na criança. A falta de habilidade para o diálogo mora em nós, adultos: deixámos de saber lidar com a infância que sobrevive dentro de nós. Mais grave ainda: temos medo de revisitar essa criança que subsiste no nosso íntimo.
Quando construímos a categoria “criança” inspiramo-nos quase sempre num critério meramente etário. Fica demarcada uma fronteira intransponível: de um lado, “eles”, as crianças; do outro, nós, vivendo no território da maturidade, longe da infância.
Estamos marcados por preconceitos e ideias feitas que vão desde a tentativa de menorizar os outros até à percepção da criança como uma entidade pura, essencial e que, por isso, se encaixa bem numa gaveta existencial. A realidade é outra, bem diferente: as crianças surpreendem-nos e revelam-se pessoas inteiras, com capacidades ao mesmo tempo iguais e diferentes das nossas. Algumas dessas capacidades nós, que nos chamamos de adultos, já as perdemos.
Essa plasticidade de pensamento, essa capacidade de estarmos disponíveis e nos espantarmos, são características que muito nos ajudariam a sermos melhor, num mundo mais aberto à mudança.
Na verdade, não existe uma entidade denominada “criança” que possa ser separada de forma definitiva do resto da humanidade.
Essa entidade é sobretudo de carácter relacional. Ela nasce das interacções entre os diferentes grupos sociais, religiosos e culturais.
Não se é criança. Está-se criança. É evidente que a Convenção sobre os Direitos da Criança teve que operar nessa generalização simplificadora. E é justo que não se relativize aquilo que é central e essencial de modo a não cair na armadilha dos relativismos culturais que nos atirariam para muita palavra e pouca acção. Foi nessa dimensão universalista que se deram passos decisivos no mundo inteiro. Em Moçambique essas conquistas são visíveis e constituem um claro motivo de orgulho.
Contudo, existem alguns cuidados que nos devem guiar na avaliação do que foi feito e do que falta fazer. Essa avaliação é muitas vezes conduzida de forma apressada e para servir intenções políticas. E as conquistas tendem a ser apresentadas de forma quantitativa: o número de escolas, o número de vacinas, o número de crianças abrangidas por programas sociais. Falta examinar a qualidade. Falta avaliar a adequação da escola em função da dinâmica do tempo que vivemos.
As muitas escolas que foram edificadas são, na verdade, uma condição para que se observe um dos direitos fundamentais da criança. Mas elas preparam as novas gerações para um futuro que já se torna presente? Está a nossa sociedade estruturada para se confrontar com a dinâmica demográfica que se avizinha? Estamos acompanhando as exigências crescentes de uma sociedade maioritariamente composta por gente com menos de 15 anos?
Noutros termos: quanto estamos construindo no ventre do presente uma sociedade grávida de futuro? Esta é as perguntas mais sérias que podemos fazer quando o tempo presente se senta no lugar do réu.
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