Por Elika Takimoto
Clinton Blaindi nascera cego e infanciou normalmente a despeito de sua eficiência em jogar bilboquê e de sua falta de medo do escuro. Pou Pipa apareceu no morro da Rocinha, onde se passa parte dessa história, adultecendo. Tinham os dois a mesma quantidade de invernos. Clinton Blaindi sabia do mundo muito pouco. Foi criado pela sua mãe que o deixava com a vizinha para trabalhar. A vizinha era uma moça desambiciada e achava que para viver basta estar vivo. Pouco conversava e tinha preguiça de descer o morro para levar cego à escola.
Pou Pipa era pedreiro. O primeiro nome foi escolhido pelo seu pai que se dizia fã dos Beatles e que, de fato, o era à maneira dele. Amava, como quem ama Imagine, Rélpi. O segundo nome (que é um adjetivo como já percebido) veio de sua fixação (que não se foi com a sua chegada à vida adulta) em botar pipa no céu.
Nos finais de semana e das tardes de verão, Pou Pipa colocava pipa para atrapalhar as correntes de ar e tinha como companhia Clinton Blaindi que sempre estava sentado em um banquinho do lado de fora do barraco. Escuta, meu amigo, o que é isso que você faz?, perguntou Clinton Blaindi quando, enfim, chegou novembro. Pou, que não sabia se divertir de outra forma, recebeu a pergunta como se tivesse visto uma equação do segundo grau. Começou sem entender como se vive sem diversão. Mas muito menos lhe ocorria como fazer um cego dimensionar o céu.
– Primeiro você tem que entender o que é o mundo. – Respirou Pou a responsabilidade.
E assim, Clinton Blaindi, ao avesso de São Tomé, cria sem ver e entendeu como o céu fora feito para justificar as pipas e que os pássaros eram pipas sem linhas. Tempo fechado era quando o céu, o espaço absoluto newtoniano, acordava repleto de portas e janelas fechadas. Ventos fortes eram o espaço curvo einsteiniano. As nuvens eram como um tecido estampado. Não entende, Blaindi? Ah é. Você não entende. Tecido estampado é… Vem comigo, Blaindi. Pou fez Blaindi colocar as mãos nos muros. Muro de tijolo sem reboco e muro rebocado de cimento salpicado com pedrinhas. Muro rebocado de cimento sem granulado. Tudo muro, Blaindi, com estampas diferentes. Blaindi entendeu perfeitamente o que eram as nuvens e estava extremamente feliz por ter um amigo como Pou Pipa.
Pou resolveu ensinar Blaindi não a soltar pipa e sim a segurá-la. Blaindi com sua cabeça andorinhando compreendeu o céu e sua extensão. Percebeu o infinito com clareza. Quantas dessas têm no céu, Pou? A mesma quantidade de estrelas, Blaindi.
Blaindi já sabia que, de noite, as estrelas apareciam. Noite, diferente do dia, como lhe explicara Pou, era algo bem distinto de tempo fechado. Noite é quando o céu se transforma em portão trancado para as pipas. E tem hora de abrir: dia. Estrelas são grãos de feijão jogados no chão que ficam atrás desse antipático portão e esses grãos de feijão atrapalham o movimento das pipas, entende, Blaindi? Blaindi entendia tudo.
Um dia Clinton Blaindi quis saber um pouco mais. Você vê Deus, Pou? Não. Claro que não. Tem gente que diz que ele está em tudo, mas ele não está em nada. Se esconde atrás do céu. E como O explicam? Pou não soube responder, embora, tivesse certeza de Sua existência porque tudo existia e para sermos temos que nascer e as pedras nascem de algum lugar porque são pedras, logo, Deus existe porque o que não cresce não procria e sim se cria.
Livro serve para quê, Pou? Para quem não gosta de soltar pipa e não quer conversar. Quem lê fica em silêncio se ocupando de virar as folhas bem devagar, explicou Pou. Pareceu a Blaindi que ler era algo que ele poderia fazer e ele quis experimentar isso, então, em dias de chuva.
Clinton Blaindi passou a ler, dessa maneira assim ensinada sem alfabeto, sílabas nem palavras escritas – já que a Pou também foi-lhe negada esta paisagem – nas noites, quando os portões eram trancados para as pipas, sempre o mesmo livro que ganhou de presente de Pou. Usufruiu, sem que o sábio amigo lhe guiasse, do bem que a leitura, assim por ele assimilada, faz para a mente e ficou viciado nesse passatempo por ele inventado. Agora era Blaindi que esclarecia a Pou de que maneira uma simples atividade pode levar a gente para sei lá aonde meu deus.
Blaindi vislumbrou que talvez as pessoas que liam mudavam de página depois de passar por um determinado número de respirações que, por sua vez, era dado pelas batidas do coração já que Clinton Blaindi jamais aprendera a contar por números e muito menos entender o tempo por relógios. Passava por um processo mental não discursivo naquela estranha atividade de inspiração e expiração entendida por ele como leitura e, em plena quarta-feira anuviada, experimentou, de repente, um vazio iluminador, um êxtase quase místico e um soltar de sua alma.
Blaindi entendeu por quê um Sol de meio dia não faz sombras, assimilou-as sem nunca ter sentido a luz. E visualizou pipas coloridas na página quarenta e sete. Nuvens intateáveis e estrelas-grãos-de-feijão suspensas no ar. Meu deus como era bom ler. Clinton Blaindi que havia apreendido o tamanho do mundo com a ajuda das pipas de Pou quis lhe descortinar o Universo.
Vem, Pou, vou ensinar pra tu o caminho.
E assim, lá na Rocinha, ainda hoje, esses dois rapazes experimentam dessabendo um estado de cessação completa do sofrimento pela leitura da eterna graça alcançada somente pelos monges budistas do Tibet.
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