A vida me fez de vez em quando pertencer,
como se fosse para me dar a medida
do que eu perco não pertencendo.
E então eu soube: pertencer é viver.
(Clarice Lispector)
Uma amiga confessou outro dia sua sensação de completo deslocamento no mundo. Depois que infartou, embora tenha se recuperado físicamente, não conseguiu reconectar-se à vida que levava, como se não tivesse mais direito a ela. Como se estivesse prestes a ir embora e tenha ganho uma sobrevida “de lambuja”. Passou a sentir um entorpecimento permanente e achou mais simples passar a deixar as pessoas decidirem seus próximos passos – o marido, a filha, os amigos. Ficou com a sensação de que “desencarnou” da sua própria história e busca, de alguma maneira, a reencarnação. A notícia recente de que seus exames médicos não estavam lá essas coisas piorou a sensação de vulnerabilidade. De repente, via-se postergando planos, pensando: “e se eu não estiver viva até lá?”…
Isso me fez pensar que os sentimentos da minha amiga “desencarnada” em vida são, na verdade, os mesmos de muitos de nós em pleno século XXI: uma espécie de não pertencimento e a sensação de constante vulnerabilidade. Ou ainda: angústia, por acreditar que é preciso pertencer a algum grupo ou lugar a qualquer preço, sob pena de flutuar no limbo. Quem já se sentiu ou tem se sentido assim ultimamente?
Em uma entrevista recente, o filósofo Zygmunt Bauman afirmou que hoje em dia trocamos de identidade várias vezes ao longo de uma existência e que isso pode ser extremamente angustiante. Antigamente, vivia-se “uma vida só”: nascia-se, fazia-se uma única escolha profissional, trocava-se talvez de esposa/marido uma vez no máximo (ou não), envelhecia-se com tranquilidade e calma, o tempo passava de uma forma que talvez pareça até monótona, mas o fato é que havia a possibilidade e a perspectiva de se viver uma vida só. Uma vida inteira sem grandes transformações ou mudanças de rumo. Sem que isso causasse, necessariamente, frustração ou angústia.
O mundo de hoje nos mostra, o tempo todo, que há muitas vidas a serem vividas. A vida virtual, claro, é uma delas. E há várias vidas virtuais possíveis, dependendo das rede sociais em que se está. Em algumas você brinca de intelectual, em outras é mais pessoal e sedutor, em outras inventa um personagem inteiramente novo ou pode viver, por exemplo, taras inconfessáveis. Se por um lado é divertido viver tantas personas, por outro a sensação de não pertencer a lugar algum de verdade pode gerar uma eterna insatisfação.
Na vida virtual, mais do que na real, há uma sensação de que é preciso fazer, o tempo todo, algo novo. Algo que surpreenda, mostre o quanto se é interessante, bacana, alguém que vale a pena “seguir” ou ser amiga. Que foto incrivelmente bela ou sexy vou inserir na minha linha do tempo? Que frase vou “postar” hoje nas redes sociais para angariar elogios e comentários? Que foto ou piada fará as pessoas me acharem incrivelmente engraçado? Que estilo de vida vou defender?
Na vida real, mais angústias. Dependendo da sua profissão, se você não tem um smartphone, não responde seus e-mails rapidamente, não tem uma conta no Facebook, nunca leu um livro digital ou não tem intimidade com um iPad, torna-se uma alma penada e sofre olhares de pena de seus pares. O estereótipo do “velhinho antenado”, que mexe com tecnologia com o pé nas costas – sim, ele existe, me garantem -, é amplamente explorado pela mídia e deixa um monte de gente… no buraco negro do não pertencimento. E que profissão vou escolher depois dos 40, já que virou tendência tornar-se escritor, músico, intelectual, consutor, terapeuta ou iogue na segunda metade da existência, depois de comprovado que todas as escolhas foram equivocadas?
E, repare, as mudanças de profissão podem acontecer várias vezes ao longo da vida pós-moderna. Apurando uma matéria sobre aprimoramento profissional, ouvi de diretores de Recursos Humanos de grandes empresas que os “jovens de hoje” têm imensa facilidade de mudar de profissão repentinamente, se algo lhes parecer mais atraente. Mantê-los nas empresas é um desafio imenso e o que seduz não é só dinheiro ou um bom “plano de carreira”: é uma espécie de estado contínuo de excitação e empolgação no ambiente de trabalho. Sem tesão não há solução, já dizia Roberto Freire. Nunca isso foi mais verdadeiro. Isso deve gerar um bocado de ansiedade. Chego a ficar cansada de pensar nisso.
E quando é o momento certo de separar do parceiro para viver uma outra história afetiva, que tenha mais a ver com a pessoa em que me transformei? Com quem viverei novos sonhos ou quem sabe velhos sonhos de juventude que ficaram escondidos e empoeirados e finalmente me permito viver? Posso ter outro filho perto dos 60 anos ou adotar um bebê…E, porque não, passar uns meses na Índia ou fazer o caminho de Santiago para rever toda a minha existência. Sabe-se lá que outras tantas opções isso trará ao meu destino? A impermanência virou um estado natural. A grama do(s) vizinho(s) – que nunca foram tantos – jamais esteve mais verde do que agora.
Impossível pensar em continuar simplesmente fazendo a mesma coisa, todos os dias, e ser feliz com isso. Isso nos torna monótonos, sem perspectivas, sem graça, sem brilho. É preciso se reinventar, inovar, incorporar o bordão pós-moderno.
É claro que ter tantas opções diante de nós e mudar pode ser saudável, divertido e maravilhoso. Esta não é uma apologia à não mudança! Meu ponto é que a cobrança social pela mudança pode angustiar e frustrar, quando não nos sentimos verdadeiramente conectados às nossas escolhas. Quando não mudamos porque realmente queremos. Não mudar é também uma escolha e não deve ser um fator condenatório ou sepultador. Não é fácil, no mundo de hoje, conquistar o direito de não mudar o tempo todo e ser feliz com isso.
Demanda muita honestidade consigo mesmo escolher a própria vida – independente do que corre ao redor – e sentir-se confortável nela, como numa cadeira mole do Sergio Rodrigues.
Ultimamente, eu realmente acredito que no lugar de pensar tanto e olhar excessivamente em volta, o que necessitamos é simplesmente mergulhar no doce e autêntico sabor das nossas escolhas, olhando para dentro, e não para fora. Pensando menos no futuro e mais no presente – um clichê que nos libera, como descreve Lispector numa crônica, da sensação de estar no deserto, sôfrego, bebendo os últimos goles de água de um cantil. Porque o mundo de hoje pode, mesmo, nos dar esta sensação.
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