“Ó polémico, tira uma foto comigo!”, por José Eduardo Agualusa

Por José Eduardo Agualusa

A disseminação dos telemóveis, quase todos equipados com máquina fotográfica, gerou um fenómeno singular de assédio de imagem, susceptível de atingir qualquer pessoa que, em razão do seu ofício, esteja sujeita a um mínimo de exposição mediática. Lembro-me, há alguns anos, de ter ido ao Aeroporto da Portela, em Lisboa, para me despedir de Maitê Proença. Tomávamos um café quando fomos interrompidos por três sujeitos de meia-idade. Um deles avançou, de telemóvel em riste:

“Somos angolanos”, disse, dirigindo-se à actriz: “em Angola todo o mundo te conhece, todo o mundo te ama.”

Maitê agradeceu, com o seu belo sorriso.

“Podemos fazer uma foto contigo?”

Maitê voltou a sorrir. Os três foram trocando de posições, fazendo-se fotografar ao lado dela, insistindo em como a conheciam e amavam e respeitavam.

Feitas as fotos, o que parecia ser o mais velho apontou o dedo para Maitê e perguntou:

“E o teu nome é?”

Maitê olhou-o, perplexa:

“Maitê?!”

“Maitê o quê?”

“Maitê Proença…”

“OK. Muito obrigado, Maitê Proença.”

Mais recentemente, mas de novo no Aeroporto da Portela, preparando-me para embarcar para Luanda, veio ter comigo um jovem cheio de suégue.

“Mano, posso tirar uma foto contigo?”

Concordei, convencido de que seria algum leitor mais apaixonado. Fizemos a foto. O rapaz estendeu-me a mão:

“Obrigado, ó polémico! Continua assim.”

Ainda o ouvi, animado, a gabar-se a um amigo: “Tirei uma selfie ali com o polémico. Como se chama o gajo?”

“Não sei”, confessou o outro. “Nem sequer sei o que ele faz.”

Intriga-me esta ânsia de alguém se fazer fotografar ao lado de uma pessoa, apenas porque tal pessoa apareceu duas ou três vezes numa televisão – mesmo não sabendo nada sobre ela. Há aqui, talvez, vestígios de um certo pensamento mágico. Eventualmente, o rapaz com suégue acredita que o reconhecimento público é contagioso. Ou, neste caso concreto, a minha suposta rebeldia. Fazendo-se fotografar comigo regressará a casa um pouco menos submisso, ou um pouco menos anónimo, ou ambas as coisas.

Antigamente havia os Museus de Cera. As pessoas visitavam o Madame Tussauds para posarem ao lado de Elvis Presley ou de Brad Pitt. Depois mostravam as fotografias à família e toda a gente se ria com a fraude ingénua. Agora saem pelas ruas à caça de “famosos”. Como não encontram o Elvis na rua (Elvis não é um bom exemplo, parece que volta e meia o encontram), contentam-se em fotografar o antigo concorrente do último “reallity show”, o cantor em declínio, até mesmo um qualquer escritor.

O dia-a-dia das pessoas está hoje tão dependente do universo virtual, das existências que vêem acontecer nos écrâns de televisão e dos computadores, que muitas delas não acreditam no próprio destino, não acreditam que respiram e estão vivas, enquanto não surgirem também, por um instante que seja, nesses mesmos écrans. Não podendo ser, resta a pose, o beicinho, junto a alguém que frequente tais écrans. Faz-se prova de vida, não através da vida, mas através da imitação da vida. Tristes tempos.

José Eduardo Agualusa Alves da Cunha é um escritor angolano.

Fonte: Rede Angola

Você achou esse conteúdo relevante? Compartilhe!

CONTI outra

As publicações do CONTI outra são desenvolvidas e selecionadas tendo em vista o conteúdo, a delicadeza e a simplicidade na transmissão das informações. Objetivamos a promoção de verdadeiras reflexões e o despertar de sentimentos.

Recent Posts

Saiba o que é o “namoro solo”, a nova tendência da Geração Z

Uma nova tendência entre os jovens da Geração Z vem ganhando força e gerando polêmica:…

2 horas ago

Mãe expõe áudios de filha que foi abandonada pelo pai: “Nunca te fiz mal, pai”

Em mensagens de cortar o coração, a menina deixa evidente a falta que o pai…

8 horas ago

Mulher que teve experiência de quase morte detalha visão assustadora que teve ao ‘deixar seu corpo’

Cirurgia radical levou paciente ao estado de morte clínica, revelando relatos precisos de uma “vida…

9 horas ago

Agnaldo Rayol falece de forma trágica aos 86 anos e deixa legado na música brasileira

O cantor Agnaldo Rayol, uma das vozes mais emblemáticas da música brasileira, faleceu nesta segunda-feira,…

1 dia ago

Padre causa polêmica ao dizer que usar biquíni é “pecado mortal”

Uma recente declaração de um padre sobre o uso de biquínis gerou um acalorado debate…

1 dia ago

A triste história real por trás da série ‘Os Quatro da Candelária’

A minissérie brasileira que atingiu o primeiro lugar no TOP 10 da Netflix retrata um…

1 dia ago