Já começaram a cacarejar os galos ainda que tomados pela timidez, há pouco tempo eram os cães a latir para dentro da minha insónia, mas não era para espantá-la, era um latido de amor; um amor canino que só dois cães vadios podem conceber. Afinal a insónia é uma cadela a evadir-se do quintal do sono. É um sonho que não nos quer sonhando a dormir.
Deixemos então a noite dormir e acordemos nós e a tarefa da escrita. São 04 horas e 13 minutos, de um madrugador inverno, o quarto é ainda escuro a não ser o fino clarão dos olhos das lagartixas de pele parda que se arrastam pelas paredes. Lá fora um camião desenrola-se no extenso lençol de nevoeiro, e vai grunhindo pela estrada batida a caminho do cais. Vejam que não é necessária a insónia para não se dormir. Há gente que trabalha a esta hora. Há gente cujo ofício se confunde com o das estrelas.
No cais, o camião vai ensopar-se de camarão; dois barcos o esperam, dois barcos cansados de arrastar o mar para dentro das suas redes, dois barcos que gritam, impacientes, as suas buzinas, cortando o desenlace silencioso da madrugada.
Quase nada circula por aqui, a estas alturas, excepto os cães e os felinos que atravessam pelo tecto da casa, os galos confusos com o fuso horário, e agora o gingado do motor do camião. É mesmo pacata esta minha Catembe que me perpassa o olhar nocturno.
Não muito distante, do outro lado da baía, chega-me imponente a cidade, monumental e antiga, como um dado sobre o dedo, resvala a sua carne de luz que preenche de brilho o trilho que percorre sua dura arquitectura de pedra; as melodias da incandescência vão subindo lentas pelo rubro telhado, e dissipam-se ao longe, entre as paredes de madeira e zinco, enquanto um grito corta a noite na exaustão do porto que trabalha.
O porto de Maputo é minha varanda! Todas as tardes navios chegam carregados de velhos fardos de sonhos, de roupa velha, da também velha Europa, que se renova no peito nu de um irmão africano; e de carros reciclados para embarcar o desejo motorizado da nossa classe média, e sua gula, dos vinhos, dos perfumes, e do charme de desconhecidos boullevards, que os vejo atravessar nossas globalizadas ruas. Mas daqui outros navios partem disparados, carregadíssimos de ouro, rubis, carvão mineral, camarões, chá, cornos de rinoceronte, tabaco, petróleo, algodão e um sei lá de coisas que me perturbam o sono.
Álvaro Fausto Taruma é poeta, contista, e cronista (moçambicano), tendo publicado vários textos em jornais, revistas e blogues, entre outros espaços dedicados a literatura. É formado em Ensino de Português pela Faculdade de Línguas (actual ECLA) da Universidade Pedagógica. É também formado em Sociologia e Antropologia na Faculdade de Ciências Sociais e Filosóficas, exerceu funções no Secretariado Técnico de Administração Eleitoral. Actualmente está ligado a área de Educação
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