Júlia Guglinski

O que a infância nos diz sobre corações partidos.

Quando eu era criança, e eu me lembro perfeitamente disso como se fosse há um segundo, eu não tinha esse medo dos adultos. Eu tinha medinhos bobos, inofensivos mesmo… Como do escuro de um quarto “assombrado”, ou do muro mais alto quando eu tentava pular pra catar goiabas alheias. Medinhos que arrepiavam minha espinha, mas de um jeito delicado, gostoso de sentir, acho que por isso toda criança é sapeca. Cai e aprende sim, mas quer cair de novo porque é delicioso sentir aquela adrenalina no coração e mesmo que se esfole, o carinho da mãe é o melhor remédio.

Na casa da maioria das vovós tem aquela geléia de jabuticaba, aquela almofada com cheiro de naftalina, creme de farmácia e farinha de trigo do bolo que vai ficar pronto daqui a pouquinho. Aquele “daqui a pouquinho” que é uma eternidade aos olhos brilhantes e sinceros de um pequenino. Pés descalços na rua, na terra… E mãos livres passando o barro sem querer no rosto. Picada de formiga, como dói! Mas você aprende que arder a pele é menos dolorido do que arder o coração. Essa máquina pulsante que se esconde dentro do peito, devia arder somente por felicidade: como segurar um filho nos braços pela primeira vez, um amor eterno e sincero, a família com cheiro de pipoca em dia de jogo, o soprar da maresia em um final de tarde na praia, que delícia isso! Mas esse músculo teimoso e solitário, gosta de nos pregar peças, e doer de forma insistente nos fazendo curvar diante do abismo. Mas não é um abismo propriamente dito, aquele buraco escuro e sem fim, mas aquele temido desconhecido, aquela barreira invisível que bate em nossa cara quando tentamos dar o primeiro passo. Esse medo é O MEDO, e não sabíamos sobre ele quando ainda tínhamos joelhinhos tortos e pés descalços.

Quando eu era criança, invisível pra mim era o campo de força do Capitão Planeta e não o meu invisível medo. Cortar o dedo ao descascar uma cenoura para então comê-la crua ( imitando o Pernalonga ), era uma aventura! Amarrar bonecas no barbante e jogar na goiabeira fazendo a coitada “escalar” e irritar a vizinha com isso… Nossa, era meu prazer! Mas depois eu pulava o muro, baixo, e ia dar um beijinho naquelas bochechas rosas que traziam biscoito pra mim mais tarde.

Criança… Eu ainda tenho um pouco dela, e não quero perder, porque é ela que me faz acordar com sede de vida, de amor e de batalha. Alguns dias estamos vulneráveis e viramos “comida de gente”, mas aprendi a não tropeçar nesse tipo de coisa. Aprendi a desviar sem chutar. Cultive amigos, brigue menos, não vale a pena. A raiva é momentânea, estamos sujeitos a ela, mas contar até dez ( que você aprendeu na tabuada ) é mais divertido e acredite, mais proveitoso depois.

Suspiro e agradeço por ter meus olhos infantis… Preciso deles em mim, como você também deveria precisar e conservar os seus. Feche os olhos, sinta o perfume velho da vovó, o cachimbo do vovô, os tombos engraçados e doloridos, as festas de fim de ano, a dor de barriga da Páscoa, o beijo de despedida do primo que demora só um mês pra voltar ( mas é muito ), a escola que era chata mas que você sente muita falta ( confesse ). Cuide da sua vida, do seu interior, dos amores que passam e ficam quando tem que ficar, e por isso, não machuque nunca um coração. Essa é uma lição que poucos costumam seguir, mas esses poucos com certeza possuem a criança em si, juntamente com o coração mais doce do que açúcar queimado na panela.

Imagem de capa: Denijal photography/shutterstock

Júlia Guglinski

Treinadora e comportamentalista de cães. Atriz de teatro, cantora e compositora.

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Júlia Guglinski
Tags: infância

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