“E quando acaricio a cabeça do meu cão, sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique.”
Clarice Lispector
O que minha cadela pensa de mim
Meu nome é Lola. É assim que me chamam. Quando gritam o meu nome, sei que me querem perto deles. Psicologicamente posso ser definida como um animal incapaz de mentir ou fingir. Minha alma mora na minha pele. Quando estou alegre, meu rabo abana por conta própria, independente da minha vontade. Quando a alegria é demais, dou umas mijadinhas. Quando estou triste, meu rabo e minha cabeça abaixam. Quando estou com sono, me esparramo no chão, do rabo ao focinho. Tudo se dependura: pele, orelhas, testa, olhos. Meu dono gosta de mim embora fique bravo quando eu pulo para abraçá-lo e lhe dou uma lambida. O que é verdade para mim não é verdade para o meu dono. A alma dele não mora na pele. Ele mente. Ele finge. Nunca o vi dar uma mijadinha de felicidade. Talvez ele não seja suficientemente feliz para isso. Às vezes, eu estou deitada do jeito como descrevi e ele está assentado numa cadeira. Ele olha para mim de um jeito diferente. Não é alegria. Não é tranquilidade. Acho que é inveja. Ele gostaria de ser como eu sou, mas não tem coragem… Está morrendo de vontade de se esparramar também no chão frio, como eu. Mas não o faz. Fico a pensar: o que o impede? Acho que é vergonha. Os homens têm vergonha uns dos outros. Sou feliz porque não tenho vergonha e faço o que quero. Talvez essa seja a razão por que os homens gostam de ter pets: porque nos pets eles projetam uma felicidade que eles mesmos não têm. Diga-me o pet que você tem e eu saberei como é a sua alma. Os pets têm uma função terapêutica. Bem, eu sou uma cadela, e tudo o que disse foi de brincadeirinha. Porque eu mesma, na realidade, me contento em ser feliz. Não gasto tempo pensando essas coisas…
Rubem Alves em “Ostra feliz não faz pérola” (p. 24-25)
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