Eu achava que gostar de sol era coisa de criança. Desenhar aquela bolinha amarela com os raios saindo e iluminando tudo no papel, geralmente uma paisagem ou uma casinha no meio do sertão. Hoje vejo que é engano. O sol é para todos, necessário, caloroso. Você já brincou de olhar para o sol sem piscar? Se sim, é doido que nem eu, ou no mínimo teve uma infância movida a curiosidades. Sentiu nos olhos um apanhadinho dos três mil graus da superfície solar, veja só.
Você já observou o sol nascendo? E pondo-se? Ficou grato pela grandiosidade da estrela? Se sua resposta foi sim para tudo, é provável que seja um admirador dos espetáculos da natureza. O momento em que o sol aparece no horizonte, ao Leste, tem para nós humanos uma simbologia especial de alvorada, de nova aurora, algumas oportunidades, outros recomeços, persistências enfim.
Na mitologia grega, a deusa do amanhecer é Eos, e sua contraparte romana é Aurora. É irmã da deusa Selene, a lua, e de Hélio, o sol. Outras mitologias também têm deuses e deusas do amanhecer. Na Cosmologia, ramo da Astronomia que estuda a origem e a evolução do universo, o sol é furioso. A temperatura de seu núcleo é de dezessete milhões de graus centígrados e estamos há uma distância confortável de 150 milhões de km dele.
Se a terra ficasse mais perto os oceanos ferveriam, se ficasse mais distante seríamos um deserto gelado. Mas nosso sol não é só calor, é luz, e tudo que está próximo dele fica ofuscado pelo seu brilho. Um verdadeiro show. Não é a toa que o sol é considerado desde a antiguidade um deus imortal, nasce todas as manhãs e põe-se todas as noites. Na astrologia, representa realização pessoal. Platão fez dele a imagem do Bem. Seu desaparecimento seria a nossa morte. Somos enquanto ele é.
A lembrança mais bonita de uma criança é de um grande amigo que foi embora e ficou nas suas memórias. Durante alguns anos morou na casa da minha família um grande amigo. A casa dele havia incendiado e esse tempo de acolhimento foi necessário. Joãozinho era seu apelido. Eu adorava esse nome, porque lembrava de “João e Maria”. A vida era dura, contudo pobres costumam ser solidários. É comovente, abrem a casa e inserem pessoas em suas rotinas com uma naturalidade que não se costuma ver entre pessoas com grana. É uma bondade despretensiosa, genuína. Ricos são desconfiados. Melhor não arriscar, devem pensar.
Diariamente Joãozinho madrugava, abria o portão de casa e ficava na entrada, dentro da porta, erguia um cálice de água ao céu e fazia uma espécie de saudação ou oração ao sol. Era um barato, ele dizia que agradecer à natureza pelas dádivas era necessário. Sem o sol a vida humana não seria possível, repetia. Pela expressão de prazer dava pra imaginar que sentia-se bem, parecia com minha mãe quando sentia o cheirinho de um café gostoso. Sorria, respirava fundo, regozijava-se. Quem não o conhecia podia jurar que havia experimentado outras brisas.
Vocês podem imaginar como essa cena era julgada pelos vizinhos, pessoas simples da periferia. Nosso hóspede tinha outras exoticidades, além do amor ao sol, fez de nossa morada uma réplica de zoológico, criávamos passarinhos, coelhos e até tartarugas d’água dele. Sim, nunca esquecerei da cena da pobre tartaruga em nosso quintal, submersa na grande bacia de água. Criava até urubu, não conosco, pois nossa casa era pequena e meus pais não permitiram. Ele procurou guarida na casa de um vizinho, que morava numa casa maior e aceitou criar a ave. Era apaixonado por Biologia.
Essa experiência alimentou meu olhar de criança. Até hoje amo animais e sinto que também devo isso ao meu amigo. Nada é em vão. Ele era apegado ao que vinha da natureza, nada mais, tirava dela o sustento prático e o delírio dos dias. Na minha memória esse tempo rendeu. Na adolescência, soube qual era a profissão dele, uma vez que crianças estão pouco se lixando para isso, querem mais é saber se amigos são companheiros e divertidos. Pena que perdemos a singeleza com o passar dos anos e das experiências, endurecemos. Pois não é que soube mais tarde que aquele homem improvável e estranho era professor universitário? Sim, meus pais com pouquíssimo estudo abrigaram um intelectual em casa. Lecionava na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Era de uma família rica e tradicional aqui no Estado, porém havia uma certa desunião entre ele e os familiares e talvez por isso tenha escolhido morar conosco quando foi vítima do incêndio.
Eu o adorava. Ele tinha um jeito bonachão, parecia gringo. Lembro claramente dele: bonito, alto, corpanzil, vestimentas brancas, alvo loiro de olhos claros e estava sempre vermelho, que vivia na praia. Lembram da saudação ao sol? Pois então. Era solteiro, apesar das mulheres que corriam atrás, meus pais contam. Nossa junção era improvável, apesar da elevada estatura social e da distância abismal dos nossos universos, nada o impedia de embarcar no nosso modo de viver, brincava muito comigo e com meu irmão. Envolveu-se realmente conosco, ajudava em tarefas da escola, elogiava meu gosto pelos estudos e chamava-me de “doutora”, dizia aos meus pais que eu “iria longe”. Lembro de olhar para aquele gigante e pensar que queria ser como ele quando crescesse.
Era desapegado, hoje sei. Poderia ter ficado em lugar melhor enquanto providenciava nova casa, mas optou viver em um ambiente demasiadamente precário. Será que assim o fez por que queria um lar? Entrar para a dinâmica de uma família e sentir-se parte de um todo maior? Ele vestia roupas simples, comia coisas simples, frequentava lugares simples, era uma pessoa simples, enfim. É inevitável que eu ressignifique esses momentos e tire disso caras lições, como a de que simplicidade vale.
Uma vida simples não é desinteressante ou inibida de emoções. Nossas conjugações mentais são restritas e não enxergamos que há felicidade fora de riquezas exponenciais, belezas estonteantes, corações alquebrados por vulcânicas paixões ou de vidas sociais retumbantes. Lições de simplicidade não são épicas. Simplicidade é uma tímida forma de olhar, uma possibilidade que pode atender ou não. Se o mundo fosse laboratório de pessoas simples, que simplesmente são e se dão umas às outras, haveria de ter mais generosidade e menos exigência, haveria de ser um lugar melhor pois as relações seriam mais puras. O monge zen budista Jorge Mello disse que a simplicidade não é o oposto da complexidade, entretanto irmã. É uma característica do viver. É o antídoto e o oposto da complicação. É mais do que menos consumo ou menos preocupações. Uma vida simples é uma vida leve.
Joãozinho poderia ter sumido da minha mente, tão curta foi sua estadia. Quando saiu lá de casa senti muita falta dele. Com o tempo essa ausência trouxe a saudade das boas lembranças. Poucas coisas são tocantes como pessoas simples e felizes. Ele era simples, encontrava um sentido de vida inexplicável na conexão com a natureza e dava o melhor de si ao próximo. Era excêntrico aos padrões do mundo e não aparentava se importar com isso. Admirava-o, como até os dias atuais admiro pessoas autênticas como ele. Devia saber que a vida humana é uma poeirinha no cosmos, desconfio. Enquanto adulta imagino as dores que suportava por ser único em uma sociedade de padrões.
Como fez diferença ter em minha vida alguém que embora graúdo não era dado a ostentação, que foi capaz de ver minar seus bens e não perder a fina essência, de ver brilhar em mim qualidades que outros não perceberam. Sem um olhar peculiar ele teria conseguido? Desde outrora até recentemente nossa existência teve de se afinar com padrões mais ou menos gerais, frívolos e consumistas. Se vivemos diferente pagaremos por diferir. Hoje amigos perguntam por que não estou nas baladas, por que não quero carro ou casa grande. Meus sonhos hoje têm a singularidade do meu coração. Joãozinho e o sol ensinaram-me sobre simplicidade. Agradecer ao sol não é loucura, é saber dar importância ao que não é visível aos demais. O sol é a estrela real, afinal, se ele apagar sequer poeira cósmica seremos.
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