Eu registro aqui um dos meus maiores receios: tenho medo de que as circunstâncias e os tombos da vida me roubem a capacidade de me encantar. Eles ainda não conseguiram, a luta foi ferrenha, a famosa “briga de cachorro grande” contudo, sigo vitoriosa. Não posso afirmar que tal capacidade saiu intacta, óbvio que não. Houve uma parcela de comprometimento, porém, considerando a gravidade das pancadas que levei no embate, posso afirmar que os prejuízos foram mínimos.
Graças a Deus, ainda me encanto, e muito. Quando viajo de carro com o meu filho, sorrimos muito. Ele deve me achar muito boba, sei lá. Eu fico, o tempo todo, dizendo, em tom eufórico: “olha que lindo aquele ipê, Gabriel!”, mais adiante: “eita, filho, olha esse flamboyant, tem um vermelho alaranjado!” Daí a pouco: “Gabriel, olha que gracinha aquele cachorro!”. Numa dessas, ele falou me zoando: “nossa, mãe, qualquer mato é bonito para a senhora!”
Sabe, ainda vibro quando me deparo com um texto meu publicado. Nas primeiras vezes, já aconteceu de eu chorar de contentamento. Hoje em dia, estou mais acostumada, mas não fico indiferente, não consigo ficar. Eu gosto de conferir o texto e sentir a sensibilidade e a sintonia de quem escolheu a imagem que ilustra o que escrevi. E o mais especial, namoro o meu nome escrito abaixo do título. Viajo no tempo, vou lá para os meus tempos de menina, quando eu morava no sítio e tudo o que eu tinha de material literário era a cartilha Caminho Suave, da Branca Alves de Lima.
Lembro-me que eu namorava a capa daquela cartilha, olhava o nome da autora e dava vida a ele. Eu imaginava como seria a dona daquele nome. Eu inventei um rosto, uma voz, uma personalidade, as roupas, enfim. E pensava: “nossa, que mulher importante, ela tem o nome na capa de um livro!” Ah, um dia desses, fiz uma busca no google e encontrei fotos daquela autora. É bem diferente do que imaginava quando criança. Senti emoção e gratidão, pena que ela faleceu.
Então, a cada vez que vejo o meu nome como autora de alguma obra, eu digo à menina que fui um dia: “isso é pra você, parabéns por não ter desistido, eu te amo!” É meu momento de redenção. É o meu resgate. Sou eu presenteando a minha criança interior que, de tão pobre e sem incentivo, tinha vergonha de sonhar. Então, nesses momentos de extremo contentamento que a escrita me proporciona, a mulher adulta e a menina que fui se misturam, se abraçam e se emocionam. Festejamos, juntas, o nosso sagrado, pois uma compreende a alegria da outra. Somos inseparáveis, nos amamos, e precisamos muito uma da outra.
Tenho pavor da ideia de fazer tudo de forma automática. Tenho receio de não gargalhar mais. Me apavora a ideia de achar tudo normal. Eu sou movida a emoção. Amo quando me pego sentindo encanto com o trivial. É que acontece de meu filho dizer “mãe” e eu achar lindo, diferente, como se fosse a primeira vez. É como se eu tivesse ouvindo além da audição fisiológica. Ouço com a alma. Então, me dou conta de que eu tenho um filho, meu descendente, minha herança. Então digo a ele: Gabriel, eu acho lindo você me chamando de “mãe”. Ele diz sorrindo: “mãe, a senhora é esquisita demais, eu sempre te chamei assim, ué!” No fundo, ele tá acostumado com a mãe que tem (risos).
A nossa capacidade de sentir encanto é o que salva a gente. Precisamos de endorfina, precisamos desse olhar lúdico. Do contrário, a vida vira um saco. Por isso, defendo com unhas e dentes o meu direito de ser boba, de me arrepiar ouvindo uma música, de chorar olhando uma fotografia e de dançar sozinha no meu quarto ao som da música que marcou minha adolescência. Eu sou feliz assim.
Imagem de capa: HiddenCatch/shutterstock
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