“To be, or not to be, that is the question:
Whether ‘tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them? To die, to sleep,
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache, and the thousand natural shocks
That flesh is heir to: ‘tis a consummation
Devoutly to be wished. To die, to sleep;
To sleep, perchance to dream – ay, there’s the rub:
For in that sleep of death what dreams may come,
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause – there’s the respect
That makes calamity of so long life.
For who would bear the whips and scorns of time,
The oppressor’s wrong, the proud man’s contumely,
The pangs of despised love, the law’s delay,
The insolence of office, and the spurns
That patient merit of the unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? Who would fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death,
The undiscovered country from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will,
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all,
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o’er with the pale cast of thought,
And enterprises of great pith and moment,
With this regard their currents turn awry,
And lose the name of action.”[…]*
Dia desses, deparei-me com um longo vídeo (final do artigo) do professor e historiador brasileiro Leandro Karnal, uma fala de mais de sessenta minutos. Sei que assistir à um monólogo de mais de sessenta minutos nos dias de hoje, onde paciência é virtude em falta, parece quase coisa de maluco, bom, maluca ou não, eu assisti. Duas vezes. E não só assisti ao vídeo, como também me dei o trabalho de transformar boa parte de sua fala em texto. Porque, no momento atual, quando todo o tipo de informação nos invade olhos e ouvidos, quase sempre sem pedir licença, é imprescindível que eu encontre espaço para escutar, para ler e reler, aquilo que me desperta consciência, que por um breve momento me faz sentirmesmo que ilusoriamente, que não estou só em meus mais profundos questionamentos.
E um monólogo de mais de sessenta minutos, se não for muito bem embasado, com certeza não prenderia minha atenção ou de muitos outros. Karnal faz uma leitura espetacular de Hamlet, de maneira que nunca antes havia visto, até porque confesso que nunca tive paciência para ler uma obra de Shakespeare completa. E com Hamlet não poderia ser diferente, é densa, é lenta, é longa.
A partir de agora o que vou escrever vem muito da minha leitura sobre a leitura de Karnal da leitura de Shakespeare, mas precisamente, Hamlet, e prometo tentar fazê-la bem mais simples e curta (mesmo que uma obra como essa mereça leituras muito mais longas e complexas).
Dissociação na psicologia é um termo usado para falar de processos de inconsciência. Existem várias abordagens para o tema e a minha abordagem é puramente leiga, sem embasamento teórico algum, até porque se eu quisesse embasamento teórico estaria na Academia e não escrevendo em um blog. Então, colocando em leigas palavras, o ser-humano dissociado é aquele que detém grandes vãos entre seu discurso e suas atitudes. O ser-humano dissociado é aquele em que partes de sua “consciência” não conversam entre si. E como somos solitários em nossos próprios processos, existem inúmeros graus e processos dissociativos.
Eu já vivi fases de dissociação extrema e hoje ao olhar para trás e refletir sobre elas entendo muito bem porque eu não queria olhar para o que deveria ser olhado, para o essencial e porque passei tanto tempo me distraindo com dores paralelas, me anestesiando com relacionamentos e amizades rasas, remontando dramas, revivendo as mesmas histórias, me sabotando. Hoje e somente hoje, entendo porque passei tantos anos nesse “limbo”. Fiz isso porque olhar para nossas feridas, nossos traumas, nossas dores existenciais profundas é uma paulada na cabeça, ter consciência é algo que nos torna extremamente solitários, mais solitários do que já somos. E é uma solidão que corrói.
E Karnal nos lembra que fazer esse trabalho intenso de obter consciência sobre seus atos vai muito longe do espírito de autoajuda que diz “aceite-se e você será feliz”, é muito mais grave que isso, é “tente descobrir vagamente quem você é, então você não será feliz, mas sua consciência vai pelo menos fazer com que você não seja falso, vazio e comum”.
O ser humano integralizado é o contrário do ser humano dissociado, e assim como a dissociação, a integralização também existe em diversos graus e formatos. Mas, apesar de ser um processo bem distinto para cada um, existe algumas maneiras de percebê-la. O meu termômetro para medir consciência é a quantidade de desculpas que nós damos, quanto mais desculpas, mais dissociados estamos. Assumir a responsabilidade por nossos atos falhos é um grande passo no processo de consciência.
A pergunta mais famosa de Hamlet, que vem sendo repetida por quatro séculos e que muitos, inclusive eu, interpretam de maneira equivocada (começando por sua tradução para o português), “to be or not to be?” (ser ou não ser, estar ou não estar), parece simples, mas o que muitos não se deram conta é que essa pergunta nos remete diretamente para a problemática da consciência. O príncipe Hamlet é extremamente consciente, e sozinho em sua consciência ele se indaga: ” – Quando é que as pessoas vão parar de me dizer o que deve ser dito para me dizer o que as coisas realmente são?”.
A leitura de Karnal me comoveu porque eu me sinto sozinha, mesmo não tendo metade da grandiosidade do Hamlet de Shakespeare, mesmo não tendo metade do conhecimento de Karnal, me sinto sozinha em minha consciência. E sinto que é difícil viver em um mundo extremamente dissociado.
E por eu ter chegado até aqui entendo que não é um feito para me gabar, porque vejo que não foi difícil, só demandou (muita) vontade. Vontade de olhar para as coisas como elas realmente são. Por isso não acredito que chegar a um pequeno nível de consciência ou muito maior seja algo impossível para ninguém que está lendo esse texto ou ninguém no mundo. Já começa pelo fato de que ninguém precisa ler nada, nem fazer curso de nada para tanto.
Hamlet nos lembra que o caminho das pedras é simples (e ainda tão complexo): basta que comecemos a estar presentes naquilo que dizemos. Quando fazemos isso, estamos aos poucos saindo dos nossos processos de inconsciência, de dissociação e começamos a criar integridade, coerência, consciência.
Segundo a leitura de Karnal, o que Hamlet parece dialogar conosco é que: – E se as dores que nós inventamos, dores financeiras, dores físicas, dores de problemas familiares fossem o disfarce de uma grande dor maior? A dor que nós não conseguimos nominar, por isso estabelecemos dores laterais, por isso estabelecemos que eu esteja bem ou não naquele momento ou dia. Hamlet diz exatamente que essa dor nasce do fato de que todos naquela peça, em quase quatro mil e quinhentos versos, estão dizendo a ele o que ele deve ou não deve ouvir e não exatamente o que as coisas são. Hamlet objetivamente está olhando para o mundo e dizendo:
“- Quando é que haverá alguém que vai me dizer o que as coisas são? Quando alguém parará de dizer o que deve ser dito? Quando alguém parará de colocar fantasias, de beber muito (ele reclama da bebedeira da corte), de disfarçar sua dor? Quando alguém começará a estar presente naquilo que fala? Quando as pessoas começarão a ser e deixarão de não ser?”
Pois é Karnal, pois é Shakespeare, ser ou não ser? Essa pergunta também me faço todos os dias e sei que apesar de sozinha, nesse questionamento não estou sozinha. As últimas palavras de Hamlet (e de Karnal) nos trazem a principal reflexão que surge de toda a peça: depois que Hamlet disse tudo que deveria ser dito, o que sobra é silêncio. Quando todo esse barulho que faço para não me enfrentar, quando eu decidir acabar com toda a distração ao meu redor, quando eu parar de me anestesiar e resolver enfim olhar para dentro de mim, então tudo que restará será silêncio. Em uma singela homenagem às belas e sábias palavras que me inspiraram a escrever esse relato, encerro esse texto como o príncipe Hamlet encerrou sua vida, que também foram ditas por Karnal em seu encerramento:
– O resto é silêncio.
Abaixo o vídeo: