O trânsito estava parado e aproveitei para olhar para o retrovisor e vi uma cena interessante. No carro de trás estava um casal idoso. Ele conversava e dirigia, ela ouvia e interagia. Ele parou de falar e projetou seus lábios em direção aos da companheira. Foi um rápido beijo.
Olhei para frente e o trânsito fluiu e não pude mais acompanhar a novela da vida real que me era apresentada. Não tenho nenhuma informação sobre o casal e para onde foi. Ficou a impressão de testemunhar um afeto a partir de um objeto que reproduz o que passou: o retrovisor.
O gesto amoroso é o principal ingrediente daquilo que eventualmente se chama amor. A ideia de amor é uma projeção de uma falta que queremos preencher, mas nem sempre sabemos pavimentar este caminho. O trajeto pode ser construído, mas o destino é incerto. Resta-nos trilharmos, mesmo sem sabermos se estamos indo na direção desejada; o caminho para o amor é incerto.
É possível que não consigamos chegar ao destino desejado, mas as estações no caminho valem à pena. Em cada parada poderemos sentar, tomar um café e se entregar aos desejos sinceros da companhia de alguém que corresponda ao que temos de valioso. Compartilhar angústias, sonhos e pesadelos fazem parte dessa jornada utópica, mas tão motivadora.
Na incerteza do caminhar reside uma certeza, uma salvação para nossa insegurança, seres desejantes e cindidos por natureza: o carinho. O retrovisor nos aponta para o passado, mas o beijo reflete uma realidade. Por momentos visualizamos reflexos que gostaríamos de consertar ou não ter experimentado, mas estão em algum lugar. Além do mais, olhar insistentemente para o que reflete, dependendo da luminosidade, poderá nos cegar.
Voltemos a caminhar em direção à perfeição inalcançável de um relacionamento, de mãos dadas, rindo de nossos erros do passado e tentando amaciar aquilo que nos foi pesado um dia. O passado assume formas animalescas, urra, ameaça e avança sobre a nossa noite tranquila ou embota a visualização durante o dia em seu reflexo intenso.
O animal ferido e agressivo pode ser tratado, não com medicamentos, mas com a redefinição do passado, aceitar e deixar ir, e saber para onde olhar sem se ferir. Não prometo que o animal se vá, mas ficará sociável, e talvez o convide para um chá. Entre um gole quente e outro, é possível que rosne, mas será apenas isso.
No retrovisor, o casal já não se encontra, mas ainda vejo o beijo que foi dado naquele carro em direção ao ser feliz, tão diferente de uma felicidade acabada, utópica. Mas é nesta utopia que nos movimentamos, sem rumo, ao aconchego de um amor sincero, e não de um desejo neurótico insaciável que prenuncia o vazio.
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