O filme “O Show de Truman”, dirigido por Peter Weir e estrelado por Jim Carrey, cria uma estrutura muito próxima da atual estrutura comportamental da sociedade contemporânea. A obra cinematográfica dialoga com os pensamentos filosóficos de Michel de Certeau e Jean Baudrillard, apresentando a sociedade do espetáculo que se nos configura atualmente.
No filme, a vida do protagonista – Truman – é transmitida via satélite para todo o mundo, ou seja, um programa vinte e quatro horas, sete dias por semana. Entretanto, ele não tem ciência disso e acredita viver uma vida real. Essa realidade passa-se na pequena e pacata cidade de Seahaven, a qual é retratada como um lugar maravilhoso. A própria vida de Truman é apresentada de forma prazerosa, apesar da exaustiva rotina.
Toda “realidade” em que Truman acredita não passa de uma construção cinematográfica. A cidade, sua esposa, seu amigo, seu emprego, tudo não passa de uma representação. E é nesse ponto que o filme encontra-se com a vida na contemporaneidade. Vivemos sob o impacto constante da mídia, a qual nos proporciona uma “realidade” construída e nós, como bons atores, participamos euforicamente do espetáculo da sociedade.
Para Baudrillard, a cultura da atualidade é fruto de uma realidade construída – a hiper-realidade. Isto é, uma realidade construída a partir dos valores simbólicos impostos pelo sistema hegemônico. Dessa forma, cria-se uma realidade dentro da realidade, em que os valores sígnicos substituem paulatinamente os valores concretos das mercadorias (lembrando que na sociedade de consumo tudo é mercadoria, sobretudo, nós).
Seahaven é, assim, um mundo dentro do mundo, criação de uma hiper-realidade, que se apresenta de forma superior ao real. Para tanto, a “cidade” é mostrada como o melhor lugar do mundo, onde há o pôr-do-sol mais bonito ou como diz o criador/diretor do reality show: “Seahaven é como o mundo deveria ser.”
Esse mundo mágico sustenta-se através de uma enorme estrutura que segue cada passo de Truman, impedindo-o, inclusive, de fazer o que quer, como no caso em que se apaixona por uma garota e esta é retirada, por ameaçar contar-lhe a verdade, ou nos inúmeros empecilhos que são colocados ao seu sonho de ser um explorador.
Fazendo um paralelo com nossa sociedade, o sistema hegemônico, do qual faz parte a mídia (representada pelo programa), faz-nos acreditar que a hiper-realidade da sociedade de consumo, como está organizada, supre todas as nossas necessidades, sendo uma organização perfeita em si mesma.
Isso demonstra o quão perdidos estamos ao seguir o sistema hegemônico, com os seus valores sígnicos que apenas criam uma representação da realidade e buscam atender aos seus interesses, uma vez que há uma padronização imposta pela sociedade de consumo. Essa repetição do cotidiano é uma forma de a mídia manter o controle, de modo que permanecemos padronizados e sem qualquer capacidade de questionamento.
A partir do momento em que aceitamos essa padronização imposta pela sociedade de consumo, passamos a estar hipnotizados pelo poder da mídia, que age de forma camuflada, mas incisiva, em nossas vidas e impõe um amálgama de padronização e ignorância.
Sendo assim, a hiper-realidade construída, tanto no filme quanto em nossa sociedade, é mantida por uma máquina invisível (no filme, o programa; no cotidiano, o sistema hegemônico através da mídia), que nos faz acreditar no que Baudrillard chama de “Disney World”. Presos em suas celas, os homens tendem a aceitar a realidade do mundo com o qual se defrontam, como diz Christof (o criador).
Embora essa “realidade” seja apenas uma dramaturgia da vida, nós a aceitamos, pois a nossa sociedade tende a construir valores a partir de aparências, signos e status, ou, conforme diz Certeau:
“Hoje, a ficção pretende presentificar o real, falar em nome dos fatos e, portanto, fazer assumir como referencial a semelhança que produz”.
Dessa forma, estamos domesticados pelo sistema, repetindo cotidianamente seus ditames, sem nenhum poder de questionamento. Assistimos ao espetáculo e, mais do que isso, participamos dele e nos damos por satisfeitos, pois acreditamos nesse simulacro cultural que nos treina para sermos réplicas uns dos outros.
Provavelmente, é mais fácil ser apenas um reprodutor dos valores impostos pelo sistema hegemônico, vivendo uma realidade construída como um sonho colorido. No entanto, é necessário ir além desse simulacro, que nos faz acreditar que essa cultura é desejável, mas que esconde relações vazias, vidas controladas e um conteúdo permanentemente editado.
Assim como Truman, devemos questionar a realidade que nos é imposta, os valores que nos são passados e se isso condiz com o que somos e acreditamos. É preciso ser mais do que indivíduos robotizados e adestrados, pois o sistema sempre tentará seduzir-nos com fábulas do tipo Seahaven, como se soubessem de tudo que sentimos e precisamos. Mas não sabem, pois, como diz Truman, eles não têm uma câmera em nossas cabeças.
O que Christof queria para Truman, assim como o sistema hegemônico quer para nós, é nos manter prisioneiros de uma realidade construída, impedindo-nos de encontrar a verdade. Mas precisamos nos libertar dessas amarras impostas pela mídia, pois somos donos de nós mesmos e valemos mais do que um sistema diz. Somos indivíduos na vida como ela é, sem cortes ou edição, sem ilusão ou maquiagem, ainda que, para tanto, seja necessário o espírito explorador de Truman, ao invés de sermos meros personagens de um jogo fantasioso.
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