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O Transtorno de Jekyll & Hyde

Será que dá pra imaginar o que é abandonar o país em se nasceu e se viveu, ter que sair de lá em fuga, por causa de guerra, violência e destruição, talvez depois de ver uma grande parte da família morrer ao seu lado? Cruzar países e mares carregando seu filho e os únicos pertences que sobraram dentro de uma sacola plástica, sempre com o medo de ser capturado pelas polícias locais? Passar fome e privações durante toda a viagem, vendo seu filho depender da ajuda eventual de estranhos, incapaz de fazer qualquer coisa para melhorar a situação, além de continuar a viagem, tentando chegar a um futuro melhor? Cruzar uma fronteira para atravessar um país inteiro a pé, sabendo que os habitantes poderão te encarar como um criminoso ou terrorista? Ter que fugir de uma polícia que talvez tente te mandar para o lugar de onde saiu, zerando todo o sacrifício feito?

Acho que não dá pra ter a real noção do que seja realmente tudo isso, só dá mesmo pra tentar imaginar. Mas nem todos fazem esse esforço, se limitando a enxergar apenas uma ameaça em pessoas que passaram por tudo isso. É o caso da cinegrafista Petra Lazlo que derrubou um pai que corria com o filho nos braços, enquanto fazia a cobertura da entrada de imigrantes sírios na Hungria. Depois ainda deu chutes em uma menina que passou correndo por ela. Em sua defesa, ela disse que teve um momento de descontrole e que se sentiu ameaçada. Disse ainda que não viu quem agredia, por estar segurando uma câmera.

Se a gente olhar as imagens, fica difícil em acreditar na última parte. As agressões parecem conscientes e bem dirigidas. Daria para acreditar no momento de descontrole, mas de onde ele veio? Não da situação em si, ao que parece. Tanto Petra quanto os outros cinegrafistas não parecem ameaçados em momento algum. No momento em que ela derruba o Homem com o Filho nos Braços, ele está isolado da multidão, conduzido por um policial que parece apenas tentar fazê-lo correr para o lado certo, sem tentar capturá-lo. Petra o derruba assim que ele sai do alcance do policial e, depois que ele cai, aponta sua câmera para ele, filmando-o.

Difícil entender o que se passou na cabeça dela. A própria Petra também é mãe, tem uma família e deseja o melhor para ela. Mas ela também pertence a um partido de extrema-direita, que doutrina seus seguidores a encarar todo aquele que não tem a sua ideologia, religião, cor de pele ou nacionalidade como um inimigo que deve ser mantido longe das fronteiras. Naquele momento, no meio da correria entre policiais e refugiados, Petra tinha dois lados que poderiam se manifestar: um, que poderia fazer com que ela se identificasse com uma pessoa que tenta oferecer um futuro melhor para o filho; outro, onde um condicionamento ideológico a ensinou apenas a enxergar um potencial futuro criminoso. Falou mais alto o segundo, e com uma força tão grande que a levou a sair da posição profissional que exercia e interferir na situação, com violência.

Na carta que escreveu tentando explicar o acontecido, Petra diz: “Eu não sou uma cinegrafista racista, sem coração, que chuta crianças. Eu não mereço a caça às bruxas em que me atiraram, nem as ameaças de morte. Sou apenas uma mulher, que acabou de se tornar uma mãe desempregada.” Petra pode ser uma pessoa como tantas outras, gentil, carinhosa, amada pela família e admirada pelos amigos. Mas naquele campo, na fronteira da Sérvia com a Hungria, Hyde prevaleceu sobre Jekyll.

Um lugar onde o lado Hyde costuma aflorar com mais facilidade é exatamente aqui, na Internet. Parece que estar online funciona como uma espécie de poção, onde aquela pessoa pacata que a gente encontra todo dia no elevador, levando o cachorro para passear, se transforma em alguém capaz de chutar crianças em um campo húngaro. É só ver alguns comentários sobre o caso de Petra:

“Ótima ação, minha co-irmã. Essas pessoas estão ILEGALMENTE em Europa. São alienígenas. Possuem ZERO direito garantido pelas constituições. Tudo que elas querem é espalhar caos e terceiro-mundismo pela Europa. E que não permitiremos que alienígenas destruam tudo pel oqual nossos antepassados já derramaram muito suor e sangue… Deportemos TODOS eles: VIVOS OU MORTOS!”

“Esta é uma atitude de pura revolta pela a invasão de zumbis na Europa !!! Bela atitude da cinegrafista indignada com o fluxo de invasores em seu país …. Pois eu faria o mesmo!!! “

Apoiar a invasão no país alheio é fácil! Acho que deveriam repatriá los e se virem com seus problemas!”

“É isso que aconteceria se separarmos o sul e colocarmos uma barreira na fronteira, muitos nordestinos tentando invadir!”

“Os brasileiros hipócritas e esquerdistas merecem isso, eu espero ansiosamente para que encham o País (menos o Sul é claro) com estes refugiados para eles sintam na pele o erro que cometem ao condenar o Cristianismo e a civilização Ocidental!!”

Saiba mais:

A personalidade de Jekyll e Hyde descreve alguém com uma personalidade dupla, cada um distinto e totalmente oposto. Um lado de uma dupla personalidade pode ser amigável e descontraído, enquanto o outro lado pode ser retirado ou até mesmo violenta. Pessoas com transtorno de personalidade borderline ou transtorno bipolar são freqüentemente descritos como sendo este tipo de pessoa.   Transtorno de Personalidade Múltipla em “O Médico e o Monstro”

Fabio Brandi Torres

Nasceu 15 dias antes da chegada do Homem à Lua e é dramaturgo, roteirista, tradutor e produtor, mas conforme a ocasião, também pode ser operador de luz, de áudio, bilheteiro, administrador e contrarregra, ainda que não tenha sido camareiro, mas por pura falta de oportunidade. Questão de tempo, talvez, já que quando se faz teatro por aqui, sempre se cai na metáfora futebolística do bater escanteio e correr pra cabecear. Aliás, se aposentou do futebol na década de 80, quando morava em Campos do Jordão, depois de uma derrota por 6×0 para o time de uma escola adversária, cujo nome não se recorda. Ele era o goleiro.

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Fabio Brandi Torres

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