Clarice, tuas palavras entorpecem. Para ti não há uma classificação. Não se diz escritora, mas o é de forma tão visceral que chega a causar vertigens. Não vou negar aqui que cheguei até você porque disseram-me que havia algo de Clarice em mim, mas ao te ler percebi que há algo de Clarice em todos nós.
Clarice, você viveu para buscar. Buscava sempre algo nos vazios e silêncios. Naquilo que ainda não era, mas que poderia ser. Tuas palavras são buscas, são caminhos, são veios de rios que nem sempre chegam ao mar, mas que beijam as margens com uma ferocidade brutal, muitas vezes arrastando-as para si.
Clarice, quem não busca, já morreu. A vida está nessa inquietação mansa que faz a água seguir seu curso e transformar. Quem larga mão daquilo que ainda não é, mas que pode vir a ser, deixa-se enganar pela razão e morre para as boas coisas da vida. E gente com excesso de razão é chata demais.
Gente cheia de razão não entende que você, no meio do caminho, entre uma coisa e outra, pode decidir mudar de calçada, mudar de rua, mudar de humor. Gente cheia de razão não entende que existem vários jeitos de ir. Essa gente nem desconfia que o segredo está no caminho e nos olhos que o percorrem com um interesse estrangeiro.
Então, Clarice, certo dia, eis que soube, pela vida, que você era despudoradamente amada por um homem de olhos mansos e falar macio. Então eu te vi ressurgir em festa, esplendorosa, sublime, viva, declarando, em outras línguas, com seu ar enigmático: amo e sou loucamente amada!
Esse homem, Benjamin*, tirou a poeira de ti. Fez brilhar teus olhos. Traduziu teu sotaque. Pegou tuas mãos e te devolveu o mundo. Libertou-a do exílio que era essa nossa terra. Só quem ama pode dar o mundo, Clarice. Só quem ama sabe ler as verdades por trás de parágrafos que resumem, tão friamente, uma grandiosa vida.
Você, Clarice, sem saber, ao encontrar o amor, nesse hiato tão particular que te cabe, nos ensinou muito sobre ele. Você veio com essa de ser amada depois da vida e calou a voz daqueles que vivem dizendo que, em certo ponto, é tarde demais para o amor. A vida não te coube, Clarice, você é maior que ela! E o interessante é que a vida, de certa forma, não precisa nos caber também.
Aprendi com você que é preciso deixar o amor vir até nós, ingênuo e distraído. Que é preciso deixar o amor ser quando tiver que ser.
Obrigada, Clarice, por mais essa esplendorosa lição.
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Atribuição da imagem: pexels.com – CC0 Public Domain.
*Benjamin Moser: biógrafo apaixonado por Clarice, escreveu a Biografia “Clarice,” e Lançou a primeira coletânea completa de contos da escritora intitulada “Todos os Contos”.
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