Por Gustl Rosenkranz

Sobre a luta consumista e materialista em nome do nascimento de Jesus.

Natal, a festa da paz. Eu estava sentado no metrô, tranquilo e pensativo, em um dia gelado, nessa época do Advento, refletindo exatamente sobre isto: que bom que os seres humanos pelo menos uma vez por ano pensam e falam da paz e do amor ao próximo. O inverno tomava conta de Berlim, o frio penetrava em tudo, gelando o corpo, a alma e até o pensamento. Observei os outros passageiros, todos empacotados em capotes grossos, cachecóis e pulôveres, encolhidos e retraídos, como se quisessem reduzir ao máximo a própria superfície para escondê-la de um inverno castigador. O metrô estava aquecido, mas isso não parecia impressionar as pessoas, que preparavam o sangue para suportar logo mais lá fora outra dose gelada nas veias.

Desci na estação do Kudamm, uma rua chique da capital alemã, muito turística, com muitas lojas, o local ideal para encontrar algo que tinha que providenciar. Ingênuo, distraído e friorento, subi a escada rolante, ainda refletindo sobre a paz, tão pregada por todos nesta época do ano, tentando descobrir para mim mesmo se achava isso realmente bom ou meramente hipócrita.

Preferi optar pelo meu lado otimista, pensar positivo e acreditar, por um momento, que estava vivendo realmente um instante de confraternização entre os seres humanos, um instante de reflexão e de partilha, pensando no espírito natalino, que quer o bem, que acha mais importante dar do que receber, que convida a todos a parar e voltar para os valores profundos da vida, esquecendo a correria do dia-a-dia, o materialismo cotidiano, as maldades de um mundo que parece mais se preocupar com o consumo do que com o bem-estar das pessoas, com o coletivo, com o amor que deveria prevalecer entre os homens. Sim, eu pensava no aniversário de Jesus Cristo, que chamamos de filho de Deus, a festa da paz. A escada rolava e rolava, em direção ao nível da rua. Estava ainda sonhador e pensativo quando fui despertado de repente, tomando um susto forte, achando que havia saído na estação errada, pois vi uma realidade muito diferente daquela refletida. Vi outros passageiros do metrô, antes encolhidos e friorentos, transformando-se de repente em verdadeiros monstros, que pareciam arregaçar as mangas para partir para uma verdadeira luta. A escada rolante parecia algo que se vê em filmes de ficção científica: embaixo entravam seres humanos, em cima saiam androides, de feição e postura totalmente transfeitas. Demorei um pouco para entender a situação. Somente ao chegar em cima, pude compreender o que se passava: viajei no tempo, retornando ao passado, entrando no metrô perto de casa e saindo na Roma antiga, mas precisamente dentro do coliseu, no colosseum romanum, no meio de uma luta de gladiadores.

Não demorou para que compreendesse a transformação dos meus co-passageiros, que se destinava clara e exclusivamente à autodefesa, pois a rua estava cheia de gladiadores ferozes, lutadores natalinos, cada um correndo atrás de presentes baratos (ou menos baratos), de cara zangada e punhos cerrados, repetindo a berros altos e agressivos: “Pechincha, pechincha, pechincha…”. Tive que saltar para o lado para salvar a minha própria vida, safando-me por um triz de ser pisoteado por um grupo de gladiadores germânicos, cada um com dois metros de altura ou mais e pelo menos quatro de largura (poucos eram os músculos, muita era a gordura, o porte típico do gladiador moderno!). Fiquei assustado e confesso que tive medo. Consegui achar um canto seguro, junto a dois mendigos, que sentados no frio esperavam que um ou outro gladiador jogasse uma moeda na sua lata, mas que eram veemente evitados pelos guerreiros, pois pobreza não condiz com a competição consumista natalina.

Por sorte para mim os mendigos eram evitados, pois isso criou uma pequena ilha no mar de lutas, onde achei refúgio e pude escapar do pisoteio primitivo pelos filhos do Papai Noel.

Apesar do frio e da vontade de voltar o mais rapidamente para o metrô e tomar o caminho de casa, fiquei um pouco parado e continuei a minha reflexão sobre o Natal e a sua proposta de paz, sendo dessa vez menos otimista e mais realista, percebendo que paz e amor são coisas na verdade muito raras também nesta época do ano.

Por um lado, falamos de paz, mas nos comportamos primitivamente, nos preocupando com presentes e coisas materiais, roupa nova e comidas extravagantes. Estressamo-nos e ficamos agressivos, pois os presentes têm que ser comprados de qualquer jeito. Muitos se endividam, compram a crédito, só para fazer parte da luta consumista e materialista de uma festa que nada mais tem a ver com o nascimento de um profeta, do filho de Deus, que, segundo a Bíblia, terminou morrendo por uma raça que isso nunca mereceu. Achei triste ver tanta gente bitolada, limitada pelo materialismo, sem mesmo ter a coragem de assumir tal papel ridículo, justificando o seu comportamento com palavras como paz e amor.

A globalização tem tornado nosso mundo relativamente pequeno. Tradições (boas ou más) são hoje rapidamente espalhadas pelo globo, principalmente aquelas que justificam o capitalismo, o consumismo e a vontade de cada um de possuir mais e mais, mesmo que para isso tenham passar por cima de cadáveres – que é o que fazemos quando compramos artigos baratos que só custam pouco porque foram produzidos à custa da saúde de trabalhadores semiescravos, muitas vezes crianças, que trabalham em muitos países (inclusive no Brasil) de forma totalmente indigna. Trata-se de um fenômeno mundial. É a mesma coisa em qualquer nação já contaminada pelo vírus do consumismo natalino. É a mesma coisa na Alemanha, nos Estados Unidos, na Suíça, no Brasil… Eu não entendo, por exemplo, porque que hoje em dia até os chineses comemoram o Natal e gastam tanto com presentes! Arenas natalinas, coliseus e templos de consumo existem em toda parte.

“Meu Natal comercial, em pacotes vem chegando, vem trazendo nostalgia, bem vazio me deixando…”

Essa minha experiência com os gladiadores me deixou clara uma coisa: mesmo que por um lado eu respeite o direito de cada um de sair por aí consumindo e gastando muitas vezes até o que não pode em nome do nascimento de Jesus, eu nunca mais quero fazer parte dessa maluquice, seja nas ruas de Berlim, seja nos corredores do Shopping Iguatemi em Salvador ou seja lá onde for. Refleti sobre tudo isso, desisti de comprar o que precisava e voltei para casa, preferindo esperar o fim da luta, até que os gladiadores se acalmem, o que infelizmente ainda vai demorar, pois, após o Natal, começa a outra competição: a troca dos presentes recebidos, pois não agradaram e nem saciaram a fome dos gladiadores de possuir algo novo e cobiçado pelo resto da sociedade.

Desejo a todos vocês uma boa festa natalina, tranquila, com saúde para todos (o nosso bem maior!), sem brigas na família, sem cara feia por causa de presente “mal dado”, sem desencontros e decepções, sem dores de barriga por causa do excesso de comida e sem dores de cabeça devido ao excesso de bebida alcoólica. Desejo menos presentes e mais presença, menos cobiça e mais compaixão, menos materialismo e mais profundidade. E que no final sobre pelo menos um tiquinho daquilo que nós mesmos nos propomos com tal festa: um pouco de paz e amor.

Gustl Rosenkranz

Apaixonado por palavras, viciado em escrever, sem luvas, tocando no assunto, porque gosta e porque precisa, sobre a vida e tudo que a toca.

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