Isaias Costa

Os holofotes embaçam a visão

* Alerta de vários spoilers

*****

O escritor Anderson França escreveu nas suas redes sociais uma série de cinco textos levantando reflexões acerca do espetacular filme “Coringa”, lançado em outubro de 2019. Num desses textos ele citou uma frase que aprendeu a partir da banda Racionais MC’s que diz: “Os holofotes embaçam a visão”.

Essa frase é muito verdadeira e revela o quanto esse mundo de exposição às redes digitais supervaloriza as pessoas que aparecem mais, que têm mais likes, mais seguidores, mais views etc.

Ele comentava em seu texto [link aqui] sobre o vazio que todos nós trazemos conosco, as sombras que, por mais que tentemos trabalhar em terapia, ainda persistem e nos atormentam. Essa busca de aplausos e reconhecimento alimentada pelas redes sociais é como esse holofote: tem uma luz forte, mas embaça a visão. Perceba que metáfora interessante! Ao mesmo tempo que o holofote ilumina muito, também dificulta a visão de quem está sob o seu foco.

Vale ressaltar que o Anderson de forma alguma demoniza o uso das redes sociais, até porque é por lá que ele divulga seus textos. O que ele faz é levantar a reflexão sobre a ilusão de se relacionar importância com o quanto se aparece nelas.

Há alguns meses o próprio Instagram mudou seu algoritmo para que as publicações deixassem de quantificar os likes. Já foi divulgado que o Facebook também tomará essa medida em breve. A atitude se justifica porque, por causa desse vício, milhões de pessoas estavam perdendo o sono, piorando sua produtividade, deteriorando relacionamentos próximos etc.

Essa é uma reflexão importante e ao mesmo tempo espinhenta, uma vez que é uma forma de olharmos no espelho, e me coloco nesse mesmo barco.

Eu escrevo na internet e seria hipocrisia da minha parte dizer que não me importo em ser ou não ser lido, de ter ou não muitos likes etc. Porém, é libertador expressar isso com franqueza, pois não há nada de errado no reconhecimento desse desejo. Na realidade, sofrem bem mais os que negam e dizem que não se importam com o feedback daquilo que postam nas redes…

No filme Coringa, dirigido por Todd Phillips,  a realidade descrita acima é transportada para a TV. Em diversas cenas vemos o protagonistas, Arthur Fleck, assistindo hipnotizado aos principais programas de auditório dos EUA.  Um de seus prediletos tem o seu ideal de comediante representado pelo apresentador Murray Franklin, interpretado pelo ator Robert de Niro.

Arthur, assisti ao lado da sua mãe, esse programa todas as noites. Ele se imagina no programa e sendo efetivamente reconhecido pelo apresentador e pelo público. Inclusive, durante os programas, faz encenações em casa e transmuta-se para a realidade de seu desejo, sempre alimentando a esperança de se tornar um comediante reconhecido e amado: aquele que faz rir.

No entanto, o filme também retrata o quanto ele foi abandonado e mal tratado desde a a infância, o filme não poupa exemplos que indicam o porquê da série de transtornos mentais dos quais ele sofre. Ele nunca se sentiu respeitado por ninguém e era visto por quase todos como um sujeito estranho, que merece ser desprezado.

O que não é tratado, entretanto, é vulcão adormecido e, após o assassinato de três homens ricos no metrô de Gotham City, a mídia jornalística retrata Arthur como alguém que quer fazer uma revolução, mas, em princípio, isso não era o que ele pensava ou almejava.

É aqui que está a questão do holofote, pois Arthur parece ter a sensação de que está começando a ser visto e, reconheço, isso só foi possível depois que ele assumiu o personagem Coringa, que imprime medo nas pessoas e que é visto como uma espécie de justiceiro.

Também foi após a fama e participando e recebendo um convite real para o programa de Murray Franklin, que ele alcança de forma doentia o que tanto deseja:  o reconhecimento. O mais louco é que há um misto entre ele ser visto como um vilão por muitos enquanto, por outros,  é tido como um herói.

Falta de reconhecimento como ser humano, impossibilitada pela vida que teve até então e pelas condições sociais brutais em que foi criado, seria o que o levou a uma identificação tão grande por um personagem que se mascara de palhaço?

Esse filme traz essa simbologia riquíssima de ensinamentos e, claro, traz também uma série de outros ensinamentos que ressoarão dentro de cada um de forma particular.

Que tenhamos a capacidade de olhar para nós mesmos e despertar a luz que vem de dentro, tendo a consciência de que esses holofotes, sejam das redes sociais, sejam da TV, só embaçam a nossa visão. Como vimos em Coringa, o desejo de ser reconhecido pelo outro nada mais é do que um profundo sintoma do não ser reconhecido por si mesmo.

Isaias Costa

Bacharel em Física. Mestre em Engenharia Mecânica e Psicanalista clínico. Trabalha como professor particular de Física e Matemática e nas consultas com Psicanálise em Fortaleza. Também escreve no seu blog "Para além do agora" compartilhando conteúdos voltados para o autoconhecimento e evolução pessoal. Contato: isaiaspsicanalista@gmail.com

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