Basta fechar os olhos e evocar uma lembrança afetiva. Uma manhã morna num parque cercado de eucaliptos úmidos, cujas folhas agulhadas ainda retêm gotículas da chuva da noite. O toque da água fria do mar na pele aquecida pelo sol; os pés pisando o chão de areia granulada, a onda quebrando contra o corpo, o mergulho. A sensação de calor e deleite de estar envolvido pelos braços de alguém a quem amamos; o calor do encontro entre os corpos, o perfume reconhecido, o ritmo dos batimentos dentro do peito. Somos seres sensoriais, uma mistura de cheiros, sons, imagens e texturas. E uma pergunta nos inquieta: tudo o que vemos, ouvimos e sentimos existe de verdade? Ou é a nossa interpretação do mundo que cria a realidade?
Segundo Lacan, o real, o simbólico e o imaginário, estão de tal forma entrelaçados em nossa estrutura psíquica que se um deles deixa de exercer força sobre os outros dois, há um nó que se desmancha, os elos ficam soltos e caem apartados, deixando-nos desestruturados, porém libertos. O real é o que já existia antes de nós o interpretarmos; ele não depende de ninguém para se manifestar. O campo do real é o campo da “coisa”; daquilo que é nomeável e escapa à simbolização. Isto é, pode ser descrito por palavras. “Aconteça o que acontecer, amanhece”. O real existe por si mesmo, escapa ao nosso desejo e ao nosso poder. Queira ou não, o sol se põe e nasce. O instinto de sobrevivência pertence ao real. Diante do perigo iminente reagimos, ficamos em alerta, prontos para enfrentar ou fugir. O real, do ponto de vista da Psicanálise, é um conceito que produz uma significação diferente do que denominamos realidade. Real não é a mesma coisa que realidade. A realidade precisa dos três campos ou dimensões para existir. O real não precisa dos outros campos, pois ele basta a si mesmo.
O imaginário é o real subvertido à nossa ordem, ambição ou desejo. Por volta dos seis meses de idade, a criança consegue olhar sua imagem num espelho e reconhecer-se como aquele que a contempla do outro lado. Essa visão infantil de si mesmo é o nosso imaginário desenhando à nossa frente uma reprodução de nós mesmos. Uma ideia perturbadora é a de considerar que a imagem que vemos no espelho pode ser absolutamente diversa da imagem que o outro vê quando olha pra nós. Nunca saberemos como somos fisicamente, de fato, aos olhos do outro. A coisa fica ainda mais complicada quando descobrimos que cada um também nos vê de acordo com a sua simbologia ou perspectiva. Louco, né? Ainda bem que é! Afinal, aquelas sardas que nos incomodam tanto podem ser o nosso ponto de atração para o outro. A boca que achamos grande demais para o nosso rosto pode ser vista como atraente, voluptuosa, sensual… Vai saber! Por isso é tão comum implicarmos com a nossa imagem estampada numa foto. Quando você se olha no espelho, e você faz isso com frequência, aquele ser ali do outro lado já é meio familiar para você. Você já se acostumou com suas imperfeições e assimetrias. Só que, no espelho, você vê a sua imagem invertida; e, na foto, você vê o que os outros veem. Sim, está ficando cada vez mais difícil! Mas, não se desespere… É assim para todo mundo; até para a Giselle Bündchen que, inclusive, decidiu se aposentar!
Não menos desconcertante é a percepção da sua voz! A voz é real certo? Mais ou menos. Quem nunca ficou impressionado ao ouvir sua própria voz numa gravação? Aquela sensação de “Credo! Não acredito que minha voz é assim!”. Então, acontece que é! A voz que ouvimos quando falamos, não é a mesma voz que aquele (coitado ou abençoado!), que conversa conosco, ouve! O som pode chegar aos nossos ouvidos de duas maneiras diferentes: conduzido pelo ar ou pelos ossos. Na condução pelos ossos, a transmissão do som vai das nossas cordas vocais para a cóclea, estrutura em forma de caracol, localizada nas profundezas de nosso ouvido e responsável pela captação do som. A frequência desses sons enviados por nossas cordas vocais é diminuída ao longo do caminho e é por isso que nossa voz, quando gravada, nos parece mais aguda, porque a ouvimos com a frequência de sons normais, pois são enviados pelo ar. E é por isso que, de acordo com o professor de psicologia da Universidade de Glasgow, pesquisador de percepções vocais, Pascal Belin, “nós nunca ouvimos nossas vozes como as outras pessoas ouvem, por isso nossa surpresa ao ouvir uma gravação”. A otorrinolaringologista Chris Chang, de Virgínia, EUA, endossa a teoria do professor Belin e explica que quando ouvimos nossa voz gravada o processo de recepção do som não tem mais a ver com a cóclea, mas com o ar. A voz que ouvimos gravada é a voz que todas as outras pessoas ouvem. Portanto, se você se diverte muito cantando no chuveiro é melhor não gravar a cantoria e conservar a diversão.
Ainda na esfera do imaginário, nascem nossas demandas e, como consequência, nossas frustrações. O anseio por carinho, afeto, reconhecimento e aceitação são demandas essenciais que constituem a nossa natureza humana. Quando nossas demandas são contempladas, somos felizes. A privação da demanda nos faz sentir tristeza, dor e abandono. Esse caldo de satisfações e frustrações vai constituindo a nossa maneira de ler, interpretar e interagir com o mundo e com as pessoas nele inseridas. É por meio do simbólico que construímos nossas relações. O simbólico é o campo da linguagem, das palavras, dos sons, conceitos e ruídos que vão se transformando em símbolos à medida que os interpretamos. O ser humano socializado aprende a adiar o desejo ou impedir a sua realização. O processo de socialização baseia-se na castração do desejo para a realização da convivência. No terreno do simbólico os desejos humanos incluem a realização como pessoa e como profissional; além do desejo de descobrir, inventar, criar, tomar iniciativa, participar, amar, compartilhar. A realização dos desejos exige trabalho, persistência, perseverança, esperança, motivação; é um processo, não acontece por magia ou milagre. Sua realização dependerá da atuação em equipe das nossas potencialidades reais, mais a ousadia do imaginário, a criatividade do simbólico e a plasticidade da perspectiva.
Cada um de nós hierarquiza as três dimensões (real, imaginário e simbólico) de forma diversa. Aquele que apresenta predominância do campo real será mais bem sucedido em atividades que envolvam curar, construir, reparar. Essas pessoas têm um mecanismo de funcionamento mais técnico, racional e objetivo. Se, entretanto, a pessoa tiver predomínio de registros do campo imaginário, sua atuação será extremamente eficiente em atividades voltadas para harmonização e equilíbrio, quer seja do indivíduo ou do ambiente. Essas pessoas são mais afetuosas e disponíveis emocionalmente. Se por outro lado, o campo do simbólico predominar na estrutura psíquica do indivíduo, ele se voltará para atender a sociedade no sentido de promover crescimento, realizações e terá ampliada a capacidade para criar.
O real, o imaginário, o simbólico. Faces de nós mesmos que se alternam a depender do quanto estamos aptos para atender e entender nossas próprias demandas em conexão com as demandas do outro. Voltando a Lacan, temos um nó formado por três elos que se apoiam e se conectam para que sejamos capazes de mixar nossos registros e fazer uma interface, na constituição de uma teia complexa de relação com o mundo. Somos algo semelhante àqueles globinhos recobertos por retalhinhos de espelho. A cada sombra ou luz projetada, exibiremos uma nova versão de nós mesmos que pode nos parecer estranha, mas profundamente familiar ao outro e vice-versa. O fato é que nunca saberemos o que somos na realidade aos olhos de quem convive conosco. A saída é olhar com generosa atenção para o tipo de reação que provocamos. Talvez aí esteja a chave. Não para resolver esse dilema. Mas para nos tornarmos menos distorcidos e sedimentados. Afinal, generosidade é dar mais do que se espera de nós; é ir além da expectativa do outro; é nos comprometermos por transformar esse nó em laço. Afinal, independentemente da perspectiva, os laços são muito mais interessantes e transformadores do que os nós.
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