José Castello
Um amigo, que é poeta, muito bom poeta, reclama de um incômodo íntimo, um mal-estar sem nome, que nunca o abandona _ mesmo nos melhores momentos de sua vida. Escondo seu nome porque ele me fez esse desabafo durante um jantar, talvez empurrado pela força de um bom vinho. Não é a primeira vez que ouço de um poeta uma reclamação semelhante. Poesia e mal-estar parecem estar não apenas associados, mas intimamente ligados. Um não existe sem o outro. Um é, de certo modo matreiro, sinônimo do outro.
Recordo-me desse amigo ao reencontrar um comentário de Paulo Leminski a respeito das “condições socialmente adversas, negativas” em que o poeta trabalha. Eu o anotei nas margens de um livro de Sêneca (que relação terei visto entre eles?); parece que algum tempo depois, já que escrevo agora com outra letra e a lápis, acrescentei: “trecho de ‘Poesia: a paixão da linguagem”, citado por Julieta Maria). É tudo muito vago. Já não sei dizer quem é Julieta Maria. A folhas de meu livro de Sêneca estão amareladas; a edição é dos anos 1970. O fato é que a citação de Leminski agora reaparece para me sacudir. E para me fazer lembrar de meu amigo.
Diz Leminski: “Chego às vezes a suspeitar que os poetas, os verdadeiros poetas, são uma espécie de erro na programação genética”. (Também eu pareço ter anotado suas palavras no livro errado – mas será?) Continua: “Aquele produto que saiu com falha, assim, entre dez mil sapatos um sapato saiu meio torto”. Não é nova a ideia do poeta torto. “Vai ser gauche na vida” – as palavras de Drummond, no “Poema de sete faces”, já resumem tudo. Ainda assim, é perturbador ouvir Leminski.
Ele persiste na imagem do sapato _ o que me parece ser, já agora, um salto adiante: “É aquele sapato que tem consciência da linguagem, porque só o torto é que sabe o que é o direito”. É por isso que não faz sentido algum a ideia de “endireitar” um poeta. De domesticá-lo. De enquadrá-lo em um modelo, ou uma norma. A poesia não tem a casa em ordem; ao contrário, certa desordem é necessária para seu nascimento. Pensem no próprio Leminski. Pensem em Vinicius de Moraes. Em Orides Fontela. Em Hilda Hilst. Em Mario Quintana. Diferentes, muito diferentes entre si. Cada um, no entanto, com sua desordem.
Vai em frente Leminski: “Então, o poeta seria, mais ou menos, um ser dotado de erro, e daí essa tradição de marginalidade, essa tradição moderna, romântica, do século XIX, do poeta como bandido, do poeta como banido, perseguido”. Não é que o poeta tenha que levar uma vida errática. Não é isso. Não é tão fácil. Pensem em João Cabral, em seu escritório de embaixador. Em Jorge de Lima, em seu consultório médico. No próprio Drummond, em sua mesa de burocrata no Ministério da Educação. Adelia, que escreve e reza. Manoel de Barros, que escrevia trancado a sete chaves, como um monge. Tudo parece em seu lugar _ mas, por dentro, que turbulência.
Continuo a seguir Leminski: o poeta é aquele sapato que se desvia da série. Aquele a quem, sob certos olhos, estão destinados o descarte e o lixo. Aquele que, fosse mesmo um sapato, seria vendido em “ponta de estoque”, por defeito, ou por ser extemporâneo. Não é por outro motivo que os poetas estão na ponta _ isto é, na parte extrema. Não é por outro motivo que são vistos como extremados e (sigo Leminski) e excepcionais _ ainda que a eles só se dirija o desprezo do esnobismo e sua poesia sequer seja lida, vista como inútil ou abjeta.
Penso nos poetas da nova geração. Marco Lucchesi, em sua mesa de chá da Academia Brasileira de Letras. Lucinda Persona, dando aulas de biologia na universidade. Alberto Martins, em seu escritório de editor. Nuno Ramos, em seu ateliê de artista consagrado. Antonio Cicero, em suas lições de filosofia. O poeta pode ter várias faces. Pode seguir vários caminhos _ até mesmo caminhos retos e respeitados. Por que não? É por dentro que algo se desvia. É na alma que um sapato
torto se desenha e o faz escrever.
Fonte indicada: O Globo
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