Quem lê os meus textos sabe que eu sou fã do mestre Rubem Alves assim como eu me encanto por praticamente todas coisas que o encantavam, como por exemplo, os vitrais.
Ele escreveu em diversas crônicas que uma das coisas belas das igrejas mais decoradas e das catedrais são os vitrais. Eu moro bem próximo da catedral de Fortaleza e vez ou outra fico admirando toda aquela beleza incrível.
Estava lendo uma de suas crônicas intitulada “Sobre as memórias” e achei lindas as palavras de uma amiga sua que ele compartilhou nesta crônica e me fizeram viajar nos pensamentos. Confira…
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“A vida se retrata no tempo formando um vitral, de desenho sempre incompleto, de cores variadas, brilhantes, quando passa o sol. Pedradas ao acaso acontece de partir pedaços ficando buracos, irreversíveis. Os cacos se perdem por aí. Às vezes eu encontro cacos de vida que foram meus, que foram vivos. Examino-os atentamente tentando lembrar de que resto faziam parte. Já achei caco pequeno e amarelinho que ressuscitou de mentira, um velho amigo. Achei outro pontudo e azul, que trouxe em nuvens um beijo antigo. Houve um caco vermelho que muito me fez chorar, sem que eu lembrasse de onde me pertencera.”
Maria Antônia de Oliveira
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Eu acho incrível a sensibilidade que o Rubem tinha de saber que para cada pessoa, as memórias que ele chamava de “memórias com vida própria” são despertadas das formas mais variadas possíveis.
Escrever é uma arte maravilhosa e quanto mais o tempo vai passando eu vou me aprofundando nessa verdade. Rubem Alves complementa esse pensamento da sua amiga dizendo assim:
“É com esses cacos de memória, pedaços de nós mesmos, que se escrevem romances, estórias infantis, poesia, lendas, mitos religiosos, utopias. Nietzsche dizia que só amava os livros escritos com essas memórias, escritos com sangue. E Guimarães Rosa dizia a seus leitores que, para se ser escritor é preciso conhecer a alquimia do sangue do coração humano. Ler um livro escrito com sangue é participar de um ritual antropofágico. É uma celebração eucarística.”
Rubem Alves
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As minhas memórias acionadas com a leitura de suas crônicas são apenas minhas, tem relação com minhas vivências e aprendizados. Se você lê-las, certamente despertarão outras memórias apenas suas. Isso é fantástico!
Por exemplo. Uma memória ativada em mim foi com relação às aulas de Antropologia Filosófica que tive com um dos melhores professores que já tive na vida, chamado Custódio Almeida, professor da UFC.
Nas suas aulas ele constantemente dizia: “Nós somos seres esburacados, repletos de lacunas que jamais serão completamente preenchidas. Nós buscamos o conhecimento, a sabedoria, as vivências de amor, para tentar preencher esses buracos…”.
Esses buracos são causados pela própria vida e nossas experiências. Outros são intrínsecos, ou seja, já nascem com a gente. Com as pedras jogadas pela vida vamos espalhando pequenos cacos desse nosso vitral nas memórias daqueles que cruzaram nosso caminho.
Não conheço a grande maioria dos meus leitores, porém, me deixa muito feliz saber que existem pequenos cacos meus nas memórias com vida própria de muitos deles. Sempre que leio comentários do tipo: “Nossa! Eu precisava muito ler isso, veio no momento certo…”. Provavelmente esse texto foi parar nessas memórias com vida própria e quando menos se espera, lá vem subitamente a partir de alguma vivência.
Ver a nós mesmos como vitrais é uma metáfora interessantíssima porque de fato é assim que somos. Uma mistura de milhares de caquinhos coloridos, que são preenchidos pelo convívio com nossos pais, irmãos, familiares, amigos, companheiros de trabalho etc.
A vida se encarrega de quebrar nossos vitrais e formar esses buracos que serão novamente preenchidos por outros cacos coloridos, que são as novas experiências de vida e as novas pessoas que vão surgindo no nosso caminho.
Se pegarmos apenas pequenos cacos isolados, eles não fazem muito sentido, mas se juntarmos muitos deles vão formando quem somos, com todas as nossas alegrias e tristezas, os bons e os maus momentos.
Que esse breve reflexão lhe inspire a ver a beleza que é o vitral da sua vida, cheio de buracos e imperfeições, mas que são exatamente eles que fazem a vida ter mais sentido e alegria…
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Imagem de capa: Imagem de Manfred Richter por Pixabay
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