Ana Macarini

Pais omissos: crianças perdidas

Existe uma enorme diferença entre ser uma criança levada, sapeca, sagaz e ser uma criança sem limites e sem educação. Estamos vivendo uma época muito estranha. Basta olhar à sua volta em lugares públicos e observar o comportamento de famílias com filhos pequenos. Na grande maioria dos casos fica nítida a falta de preparo dos pais. E o que se pode verificar, no lugar de onde deveria haver uma família, há uma espécie de “turma”, na qual ninguém sabe muito bem qual é o seu papel.

Infelizmente, são raras as pessoas que têm a exata dimensão do que representa trazer uma criança ao mundo. A falta de preparo começa a aparecer ainda no período de gestação; as mudanças hormonais, físicas e psicológicas da mulher parecem pegar os casais desprevenidos. Isso quando não ocorre de a própria gravidez ser uma completa surpresa. Em pleno curso do segundo milênio, época em que homens e mulheres vivem imersos numa filosofia que legitima a transitoriedade e superficialidade das relações, ainda há quem se disponha a ter relações sexuais sem proteção.

A equação simplesmente não fecha. Se o que há entre duas pessoas não inclui um projeto de convivência e uma história futura, porque diabos esse casal engravida afinal? E ocorre que, por enquanto, vivemos em um país em que interromper a gravidez ainda não é uma situação claramente resolvida, do ponto de vista legal e muito menos do ponto de vista moral – em verdade, está longe de ser.

Na hora lá do “bem bom” ninguém lembrou que uma das consequências do “bem bom” pode vir a ser uma criança. Depois vem com discurso de que a vinda de uma criança é sempre um sonho. Sonho para quem? Para a criança é que não é, certo? Porque as chances do que começou como um “acidente” vir a ser uma história bem-sucedida são realmente muito pequenas. A menos que os envolvidos tomem realmente para si a responsabilidade e encarem a história toda com seriedade e conduta amorosa.

Mas, enfim. Vamos pular essa parte da gravidez. Uma hora o bebê vai sair do conforto líquido que o envolve no corpo materno. E, sinceramente, um parto, está tão longe de ser aquele drama mexicano de gritaria que acorda os bairros vizinhos, quanto de ser aquela maravilha dos contos de fadas em que o bebê quase surge num passe de mágicas. Parto é parto. Envolve riscos, preparo, anteparo médico – se a mulher for realmente sortuda, envolve, inclusive, a presença de uma doula. A criança pode precisar de cuidados especiais, além dos normais cuidados que toda criança precisa.

Esse lindo embrulhinho que se leva para casa e que muitas vezes já foi até fotografado, ainda dentro da barriga. Eu ainda não consegui entender qual é a daqueles ensaios fotográficos com mil closes da barriga. Acho absolutamente cabível que o casal registre momentos e faça fotos juntos, fotos da barriga a cada mês, fotos com os amigos, fotos com a família. Veja bem, não é disso que eu estou falando. É que já vi cada coisa… Uns “books” que mais lembram portfolios para calendário de borracharia (ainda tem isso?), só que com a modelo ostentando um barrigão.

Enfim… O bebê que é uma bênção, e que já tem enxovalzinho combinando com o quarto, e que já tem nome escolhido desde o primeiro ultrassom que revelou o sexo, e que está sendo esperado como um presente embrulhadinho… Ai, ai, ai… esse bebê renderá montanhas de fraldas descartáveis limpas e depois sujas, muitas noites insones, muita dedicação para decifrar suas necessidades e muita compreensão dos adultos acerca da sua dificuldade em se adaptar a esse mundo aqui fora, esse mundo barulhento, pouco acolhedor e estranho, muito estranho.

E a educação desse bebê é de extrema importância para o seu desenvolvimento, tanto como ser individual, quanto como ser social que virá a ser. Mas como assim, educar um bebê?! Bebês não precisam só de amor, leite, banhos, sono e fralda limpa? Não. Não mesmo. Bebês precisam de encontros afetivos com os adultos responsáveis por ele. Precisam ouvir vozes acolhedoras. Precisam de estímulos visuais, táteis e auditivos. Precisam de adultos tranquilos para enfrentar sua inexperiência diante da vida. Bebês não precisam ser prematuramente enfiados numa cadeirinha de carro para irem ver a decoração de Natal do shopping, por exemplo.

Os pais precisam entender que ao assumirem uma criança, suas rotinas sofrerão importantes alterações. Crianças pequenas ficam irritadas em restaurantes barulhentos, cheio de gente falando alto, rindo, batendo copos e talheres. Aí, a criança que ficou irritada começa a chorar. E o que é que a gente mais vê hoje em dia? O milagre dos “tablets encantadores de bebês”. E dá-lhe Galinha Pintadinha, e dá-lhe Patati-Patatá. E o bebê fica ali, vidrado, encantado, entretido, esquecido.

Que pena! Perdeu-se neste momento de alienação virtual uma valiosa oportunidade de conviver, ensinar e educar. Ahhhh… mas então, agora quem tem filho não pode mais ir ao shopping, nem ao restaurante? Tem que ficar trancado dentro de casa? Claro que não. Mas não custa nada, lembrar que aquele é um ambiente feito para os maiores. Não custa nada levar uns brinquedinhos, agir de forma a ajudar a criança a interagir com o ambiente, brincar com ela, incluí-la no passeio. E, com certeza, escolher mais passeios ao ar livre com possibilidades de diversão também para o bebê ou a criança.

Um pouco mais adiante nos depararemos com uma nova epopeia na vida dessa família e dessa criança: a escolha da melhor escola. Nossa! Aí a coisa fica realmente complicada. Essa é uma das decisões mais difíceis e delicadas para qualquer pai e qualquer mãe. E, tanto faz se essa família puder ou não puder; optar ou não optar por uma instituição pública ou particular. Há instituições públicas que fazem trabalhos belíssimos com os pequenos, os médios e os jovens. Assim como há instituições particulares que honram seus projetos político-pedagógicos, ainda que sejam – e isso não dá para negar -, uma empresa.

Ocorre que muitas vezes os pais se esquecem de avaliar se as posturas e missões abraçadas pela escola conversam com os valores adotados e praticados pela família. Muitas vezes, os pais escolhem uma escola, levando em conta o custo-benefício desse investimento. Acontece que o desenvolvimento humano, sobretudo quando envolve formação acadêmica, desenvolvimento de habilidades cognitivas e dos recursos de convivência social, não é uma equação numérica. Há inúmeras variáveis a serem observadas. E essas variáveis vão desde o peso que se dá aos processos e resultados até os círculos de convivência que serão oferecidos a essas crianças e jovens.

Entretanto, há uma questão que anda sendo largamente negligenciada, junto com os bebês que ainda não nasceram, os bebês que já nasceram, os adolescentes e os jovens: não é a escola que forma o caráter, não é a escola que faz as primeiras aproximações com as relações sociais, não é a escola que ensina os primeiros limites de convivência, não é à escola que compete ensinar os pequenos a conviver com os mais velhos e os mais novos. Muitas famílias têm aberto mão desse papel fundamental que é a construção dos alicerces de caráter, valor moral e conduta ética.

O que precisa acontecer de verdade é uma integração entre a missão familiar que é da esfera privada com a missão da escola que é da esfera pública. A escola precisa oferecer espaços de aprendizagem e convivência que favoreçam a formação de indivíduos que tenham condições de respeitar o diferente, de aprender com quem discorda dele. Na escola precisa acontecer a primeira experiência de validação da autoridade extrafamiliar, uma autoridade que é necessária para o estabelecimento de um ambiente seguro e harmônico, uma autoridade amorosa, coerente e justa. Qualquer coisa fora disso é o caos.

E, vamos admitir, o caos já está instalado. Tenhamos a bondade de recuar uns passinhos e rever a nossa parte nessa história. Cada criança negligenciada, será um adolescente mais instável que o normal, chegará à juventude sem os recursos necessários para fazer as inúmeras escolhas que a vida apresentará e, provavelmente terá sérias dificuldades para amadurecer, ainda que envelheça. E, envelhecer vamos todos, ainda que não amadureçamos.

Ana Macarini

"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"

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