Certa vez ouvi de uma professora, uma jovem de lindo sorriso e cabelos curtos, que ela tinha passado grande parte de sua vida sem sorrir.
Notando a perplexidade minha e a dos que estavam ao meu lado, a professora fez um breve resumo de sua história para nos contar mais sobre o riso que lhe foi censurado por anos.
Sua mãe quando ela era muito pequena foi internada em um hospital psiquiátrico e lá viveu por praticamente toda a vida, tendo sido a avó materna encarregada de sua criação. Essa avó era uma mulher muito dura e dentre as inúmeras afirmações que fazia, a mais usual, era a de que a neta, ainda menina, não tinha direito de rir, pois sua mãe vivia internada e merecia ter sua dor “respeitada”.
Então toda vez que aquela menina sorria, logo cobria a boca com as mãos em um gesto de censura por ver-se feliz.
Durante anos ela engoliu o riso e transformou-o em vergonha. Durante muito tempo essa menina sentiu-se culpada por ser feliz. “Como ela podia ser tão má?” “Por que por vezes o riso queria saltar-lhe da garganta, se tinha uma mãe que sofria?” Era o que se perguntava e por mais que tentasse se policiar, que tentasse não sorrir, nas raras vezes em que ela o fazia a avó estava lá para dizer-lhe que era uma péssima pessoa, que não tinha sentimentos.
A menina cresceu e junto dela seus demônios. A menina cresceu, a avó deu um passo para trás, mas ela ainda ouvia a velha senhora repreendê-la pelo riso. A menina que engolia o riso, se transformou em uma mulher que achava que não merecia ser feliz. Afinal, sua felicidade vinha vinculada à tristeza de alguém que ela amava muito.
Não é preciso que a gente vá muito longe para perceber que a história da menina que não podia sorrir também conta um pouco da nossa história nesse mundo agitado, deveras confuso, e cheio de muita censura.
Acho muito importante que tenhamos a liberdade de rir e de chorar nossas dores, respeitando as dos outros obviamente, mas não nos negando aquilo que é genuinamente nosso: o direito à felicidade ou à tristeza espontânea.
É bastante comum ouvirmos de outros, enquanto sorrimos, que existem pessoas a sofrer no mundo ou, enquanto choramos, que alguns passam por situações muito mais difíceis.
Não podemos ignorar as verdades do mundo, mas não devemos nos negar um contato íntimo com nossas emoções. Esse contato é muito importante, pois pode evitar que conteúdos inconscientes passem a dirigir nossas vidas para um rumo indesejado.
De acordo com a psicanálise tudo que reprimimos acaba indo para a nossa sombra. Jung e Freud definiram bem essa nossa bagagem inconsciente e sua influência sobre nossa vida.
Para Jung a sombra provinha do inconsciente coletivo, para Freud de experiências vividas na infância e independente da origem atribuída à sombra, cada um de nós tem a sua.
A nossa sombra é como uma sacola onde colocamos, desde muito pequenos, tudo aquilo que aprendemos como não apropriado. Nessa sacola, podem existir sentimentos bons e ruins. No caso da professora a felicidade acabou indo para sua sombra.
O problema acontece quando conteúdos psíquicos duramente reprimidos se transformam em complexos que podem adquirir autonomia, tornando-se imunes à ação da nossa consciência.
Nessas condições, alguma coisa parece nos levar para uma direção quando gostaríamos, na verdade, de ir para outra, fazendo não aquilo que achamos, em consciência, ser o melhor para nós, mas o que as forças inconscientes da nossa sombra nos ditam.
Comportamento obsessivos compulsivos, vícios, emoções, atitudes repetitivas e incontroláveis e somatização de dores físicas podem estar diretamente ligadas a nossa sombra.
Eu não sei da vida sentimental da minha jovem professora, mas pode ser que ela, antes de tornar consciente aspectos de sua sombra, tenha escolhido como parceiros amorosos pessoas que lhe tenham causado extrema tristeza e desgosto. Essa seria para ela uma forma de impedir sua felicidade e consequentemente garantir o “respeito” a sua mãe, de acordo com o que lhe foi imposto pela avó.
Quando nossa sombra se projeta em nosso parceiro sentimental, ela pode fazer com que tenhamos relacionamentos afetivos penosos e destrutivos, que estejam muito longe de onde nossa consciência diz ser o mais acertado para nós. Relacionamentos que geralmente se repetem com frequência. O mesmo pode acontecer com um emprego ou com uma meta de vida, por exemplo.
Bem citou Jung que aquilo que não fazemos aflorar à consciência aparece em nossas vidas como destino. Se pensarmos bem, talvez não tenha sido o destino o responsável pelas repetições, muitas vezes inoportunas, de nossa vida.
Somente com uma análise cotidiana de nossos pensamentos e ações, com a nossa mente desperta, é que podemos tornar nossas decisões condizentes com o que realmente queremos para nós.
O autoconhecimento e a análise – feita por nós mesmos ou por um profissional – nos permite entender as diretrizes que nos levaram a colocar determinados aspectos em nossa sacola. Repreender nossa alegria ou nossa dor só nos tornará mais suscetíveis à ação desordenada da sombra que nos habita.
A negação em nada nos auxilia. Devemos aceitar que essa sombra existe em nós e torná-la clara a nossa consciência e assim enfraquecer seu poder sobre nossas decisões.
Temos o direito ao riso e à lágrima sim, mas ninguém tem a obrigação de ser feliz ou triste o tempo todo.
A minha professora buscou ajuda profissional de um psicanalista e novamente permitiu-se ser feliz, tirando a alegria e o riso de sua surrada sacola de conflitos sentimentais de tal maneira que passou a ministrar aulas de bem-estar físico e relaxamento.
Apenas tornando “consciente o inconsciente” é que podemos encontrar muitas das respostas para as questões que parecem se repetir em nossas vidas. Superando dessa forma complexos e problemas que muitas vezes fogem ao nosso entendimento racional.
Acompanhe a autora no Facebook pela sua comunidade Vanelli Doratioto – Alcova Moderna.
Título original: “A menina que não podia sorrir e todos nós”