Por Gabriela Gasparin
Aos 96 anos, Rosa Maluf Milan ainda andava de salto alto. Era um saltinho pequenininho, de uns dois centímetros, mas era salto alto.
E foi em cima do salto que a elegante empresária, que teve a sorte de ter nascido numa família rica, conseguiu se equilibrar para chegar aos quase 100 anos praticamente sem dores e com uma memória de quem consegue lembrar a história de toda a sua vida, sem interrupções. “Não sinto nada, nem dor de cabeça.”
O maior “tropeço” aconteceu 50 anos antes, quando ela perdeu o grande amor de sua vida, por quem seria apaixonada para sempre. Seu ex-marido, o médico Rachid Milan, morreu vítima de leucemia, aos 49 anos. Ela tinha 47. “Foi a coisa mais triste da minha vida. Não teve coisa mais triste.”
Cinco décadas após a morte do amado, Dona Rosa ainda se lembrava dele todos os dias, acordava de madrugada para rever fotografias e tinha de cor as 50 cartas de amor que trocaram quando ainda eram namorados. “Sinto muitas saudades. Ele era lindo. Eu adorava ele, tinha loucura por ele.”
Eu conheci a história da cordial senhora após assistir um curta-metragem sobre a vida dela, chamado justamente “Dona Rosa”. Gostei tanto do filme que a procurei para falar sobre o sentido da vida.
Ela me recebeu educadamente em seu espaçoso apartamento na Bela Vista, na capital paulista, numa ensolarada tarde.
Com uma voz tranquila característica de quem já viveu tantos anos, e um probleminha de audição que me obrigava a refazer algumas perguntas, a empresária não só me contou toda sua história como fez questão de me mostrar a requintada mobília de cada cômodo.
Entre delicadas louças, quadros de artistas renomados e tapetes persas, contudo, o bem de maior valor para ela eram, sem dúvida, as inúmeras fotos de Rachid e da família, que apontava orgulhosa e com um brilho no olhar.
“Eu tive muita energia na vida, eu nunca tive medo de nada. Muita tristeza eu tenho, eu sinto muita saudades dele, muitas saudades”, e logo em seguida soltava um “veja como ele era lindo”, apontando para a fotografia em preto e branco.
Após a morte do amado, Dona Rosa encontrou no trabalho as forças para superar a dor. A missão foi dada a ela pelo próprio marido, pouco antes de partir: “se eu morrer hoje, comece a trabalhar amanhã.”
Dona Rosa cumpriu à risca a determinação. “Ele morreu no domingo, na segunda-feira foi enterrado, e na terça-feira eu já estava no banco. Foi muito bom começar a trabalhar. Foi muito bom porque eu me curei da ausência dele trabalhando.”
Enfrentou certo machismo por ser mulher e estar à frente dos negócios na época, mas não ligava e se atirava nos trabalhos. “Não foi tão fácil. Eu tinha um pouco de medo. Mas foi lindo, aprendi, tudo eu aprendi. Aprendi com o mundo, parando e ouvindo.”
Dedicou a vida toda para cuidar das três filhas. “Fiquei viúva há 50 anos e só cuidei de uma coisa, delas, o tempo todo. Todas estudaram no exterior, elas têm muita cultura.” A mais velha é médica, psicanalista e escritora. A do meio é arquiteta. A mais nova estudou economia, mas não seguiu a profissão e “faz monumentos pelo mundo”, descreveu, orgulhosamente.
Entre outros momentos difíceis da vida, citou a morte do primeiro filho, aos nove meses de gestação, e a morte de um irmão, aos 26 anos. “Mas tudo passa, nada fica. Eu vejo que as coisas acontecem, se eu quiser ou não quiser. Acontecem. Eu tenho que aceitar.”
E com todos esses anos de experiência, diz que tudo é resolvido: “Não tem mais nada difícil para mim, tudo é fácil. Tudo se resolve, com bom senso.”
Vida no palácio
Mais velha de seis irmãos, Dona Rosa nasceu no dia 30 de dezembro de 1917. Filha de imigrantes libaneses, cresceu em um luxuoso palácio construído por seu pai na cidade de São Paulo. Estudou até a oitava série em um colégio de freiras. Cresceu em meio a festas e bailes no salão do palácio.
Casou-se com Rachid aos 24 anos. Recorda detalhadamente o dia em que o conheceu, em Capivari, no interior de São Paulo, dez anos antes do casamento. “Lembro bem. Quando cheguei lá, a primeira pessoa que a gente viu foi um homem de farda verde. Lindo, moreno, tinha 16 anos. E aí começamos a nos gostar.”
O primeiro beijo ela só foi dar 15 dias antes de se casar. “Eu tremia, imagina se eu tinha coragem de dar um beijo em alguém? Ele era um moço muito bonito, moreno de olhos verdes, e muito cobiçado, a mulherada caía em cima dele.”
Consciente de que a morte pode vir a qualquer momento, diz estar preparada. “A hora que vir está bom. Só não quero sofrer.” Certa vez ela perguntou ao médico do que morreria. “Eu não sei do que eu vou morrer, porque eu não tenho doença nenhuma. Nem dor de cabeça, nada. De velhice, ele falou. Mas quando vence a velhice? Estava na hora…”
E com quase tanto anos vividos, numa primeira tentativa ela respondeu que ainda não tinha descoberto o sentido da vida. “Não tem sentido, eu não entendo por que a gente vive, por que a gente morre, eu não entendo. Por que Deus fez assim? Viver e morrer, você entende? Eu também não entendo.”
Ao repensar, sugeriu: “É passar bem, conseguir que todo mundo se queira bem, é muito importante não brigar com as pessoas. A pessoa educada não briga com ninguém, chega a uma conclusão, a um sentido. Não é fácil, mas a gente consegue, sempre, tudo o que você quiser na vida você consegue, é só querer.” Sentia-se vitoriosa nesse aspecto: conseguiu fazer com que as três filhas e os cinco netos se queiram bem.
Perguntei se esperava chegar aos 100 anos, mas Dona Rosa nem pensava nisso, preocupava-se apenas com cada dia. “Quando a gente acaba bem tá bom. Você vê, estou com 96 anos e bem, não tenho rugas. Se eu viver até os 100 anos bem, senão, paciência, ‘Après moi, le déluge’. Conhece francês? ‘Depois de mim, o dilúvio'”, traduziu.
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