Para todos os professores e alunos que escolheram cursar Letras

Já faz algum tempo, contudo ainda consigo lembrar. Foi exercitando a interpretação de contos de Clarice Lispector e de canções do cancioneiro da MPB que definitivamente senti o prazer de estudar a língua portuguesa. Adolescente, pré – vestibulanda e ainda em dúvida de qual carreira seguiria, percebi que era na sala de aula que queria ficar. Continuar investigando, aprendendo, trocando conhecimentos com os alunos. O curso de Letras – licenciatura foi minha escolha.

“Um curso de Letras é o lugar onde se aprende a refletir sobre os fatos linguísticos e literários, analisando-os, descrevendo-os e explicando-os” – prefaciou o linguista José Luiz Fiorin no seu livro “Introdução à Linguística”. O que uma adolescente de dezessete anos esperava ao entrar em uma faculdade de Letras de uma universidade federal da vida? Eu pouco sabia. Motivada por um professor maravilhoso de português no ensino médio, escolhi o curso. Era o professor Jonas, e com ele aprendi a importância do ato de ler, a autonomia que ler em fontes limpas (os bons livros) é capaz de nos dar. Aprendi também que para ganhar conhecimento é imprescindível se afogar, ou seja, buscar textos profundos e densos – abandonar a superfície, os textos fáceis e as premissas simplistas. Ampliar o olhar e ler sobre diversos assuntos, além de textos com visões diferentes acerca do mesmo fato. Como sou grata a ele por ter me preparado naquela época para os atuais dias, crassos de frivolidades da internet. Os sites e as redes sociais arrebatam gerações inteiras que, sem formação educacional sólida e precedente, tornam-se preguiçosas de conhecer e aprender, com sérias dificuldades de abstração e crítica. Na teoria linguística, analfabetos funcionais. 

Foi com esse professor que aprendi a beleza de algumas letras da música popular brasileira, antes bem complexas para mim. Com ele aprendi a amar Nana Caymmi e quase desmaiei quando percebi a linda poesia que há em “Resposta ao tempo”. Como não havia enxergado tamanha sofisticação antes? Dialogar com o tempo é das coisas mais fascinantes e vãs que podemos fazer, exceto nessa pérola de canção composta por Aldir Blanc e Cristóvão Bastos. Após, segui enveredando pelos Caymmi e pela Tropicália. Se ganhei alguma sofisticação no gosto musical, e sei que ganhei, devo isso à semente arada por Jonas.

Queria ser igual a ele – culta, eloquente, dar aulas com inteligência e, sobretudo, com paixão. Poucos alunos gostavam dele, exigente exímio que era, mas eu sempre gostei de professores bons e exigentes. Pra mim nunca valeu ser uma ou outra coisa. Não podia ser bom e não ser exigente e nem o inverso. Se o professor era exigente, mas não era interessado ou não dava recursos mínimos para o aprendizado, costumava não tolerar. Até hoje sou assim.

Alguns anos depois encontrei o professor Jonas na UFRN e não resisti. Abracei-o uma três vezes, tão feliz que fiquei com o reencontro. Percebi que ele não compreendeu minha empolgação. Não interessa. O mais importante aconteceu: disse-lhe que estava cursando Letras graças à inspiração dele. Nunca mais o reencontrei – uma pena – mas guardo-o no coração. E como há de ser com as coisas especiais que ocorrem na vida, guardarei para sempre.

O fato é que um professor, mesmo sem desconfiar, pode influenciar seus alunos mais improváveis. Uma atitude simples, gestos do cotidiano, palavras, modos de tratar os alunos e os seus colegas. Os adolescentes podem não demonstrar, mas admiram pessoas inteligentes. Se essas pessoas forem seus professores, melhor ainda. A educação é transversal. Ela perpassa além das disciplinas, carteiras, quadros e livros. Ela passa pelo afeto, pelo respeito, pelo alimentar da autoestima, pelo exemplo. É o tal currículo oculto.

Hoje guardo na memória justamente os mestres que fizeram além de ensinar-me fórmulas ou acontecimentos. Alguns conversavam comigo tais como amigos, nos intervalos; outros elogiavam meus esforços depois de muito errar em alguma matéria; outra gostava da pronúncia do meu inglês; outra ia ver minhas apresentações de dança; outra fez-me gostar tanto de genética a ponto de pensar por algum tempo em ser geneticista ( logo eu, humanista até a medula ); outros diziam-me que, ao contrário do que o mundo apregoava, tinha capacidade de passar no vestibular. Que lindo. Que terno. Tudo isso fortalece-me até hoje, e ocorreu em escolas públicas.

O nosso país sofre e muito ainda sofrerá por não viver a realidade de um bom sistema público de educação, amplo para generosa fatia da população. Nossa realidade seria sensivelmente diferente se as escolas brasileiras fossem grandiosas, equipadas e aprazíveis ao trabalho de professores como Jonas, se profissionais dedicados como ele fossem bem remunerados e valorizados. Ao contrário disso, a escola pública brasileira sofre historicamente pelo abandono de gestores públicos. Ela precisa de investimentos e de real atenção, cada dia mais. Nos anos 2000 houve o empreendimento de políticas promissoras para a expansão de alunos matriculados, com programas como FUNDEB, PROUNI e REUNI. Apesar de toda essa facilitação do acesso e do emprego ocorrida durante os governos de Lula e de Dilma Roussef, os resultados ficaram aquém do necessário, entretanto esses incentivos governamentais não podem ser esquecidos, senão ampliados e cada vez mais consolidados.

É sabido que os investimentos em educação básica e principalmente em ensino superior são altos, contudo necessários. O custo universitário é alto em qualquer país, especificamente por uma simples razão, as universidades estaduais e federais financiam a graduação e, para impulsionar o crescimento das nações, os grandes centros de pesquisa e tecnologia. Não há na histórica recente nenhum país desenvolvido cujo crescimento não tenha passado pela escolarização da população. Um bom exemplo é a Coreia do Sul, país no qual 69,8% dos jovens entre 24 e 35 anos possuem diploma de ensino superior. Mesmo pobre e devastado pela guerra, tornou-se uma das potências do século XXI, em grande parte, graças a um investimento massivo em educação superior e básica.

Conforme disse Célestin Freinet, “O educador não é um forjador de cadeias, mas um semeador de alimento e de claridade”. A educação é uma fundadora de mundos, é a mãe sempre amorosa e cuidadosa. O sucateamento da educação pública sempre servirá apenas a quem de forma particular e escusa beneficia-se do predomínio da ignorância das pessoas, da manutenção de realidades injustas, do crescimento da miséria, do aprofundamento das desigualdades sociais, da resignação coletiva, da ignorância irrestrita, do naturalizar da violência, do atraso humano de forma global, enfim. O professor precisa ser valorizado salarial e simbolicamente, pois é o profissional crucial para a formação humana intelectual, cidadã e laboral. Esse texto quer humildemente fazer lembrar disso, além de homenagear o meu querido professor Jonas.

Uma temporada e tanto assistindo a série Hilda Furacão não foi suficiente para perceber a fina poesia de uma música sobre o tempo. Aí vem Jonas e em poucas horas faz isso. O tempo é relativo, já dizia o gênio Albert Einstein. Dependendo de quem observa, tempo e espaço mudam. Para os ansiosos, o tempo tarda. Para os enamorados, o tempo voa. O tempo pode até saber passar, zombar da nossa impermanência, rir-se dos planos fracassados e apagar os nossos caminhos, mas não é capaz de guardar a delicadeza – enquanto ele adormece as paixões, nós despertamos … Valeu, querido mestre!

“Respondo que ele aprisiona, eu liberto.

Que ele adormece as paixões, eu desperto.

E o tempo se rói com inveja de mim. Me vigia querendo aprender.

Como eu morro de amor pra tentar reviver.

No fundo é uma eterna criança, que não soube amadurecer.

Eu posso, ele não vai poder me esquecer.”

(Trecho de “Resposta ao tempo”,

de   Aldir Blanc e Cristóvão Bastos)

 







Sou Denise Araujo e não tenho o hábito de me descrever. Não sei se sei fazer isso, mas posso tentar: mais um ser no mundo, encantada pelas artes, apaixonada pelos animais, sonhadora diuturna, romântica incorrigível, um tanto sensível, um tanto afetuosa, um tanto criança ...