Por Claudia Antunes
A primavera acabrunhou-se este ano e está com ares outonais, despida de flores e frutos. Não desejo que se estenda até o verão com esse aspecto senhoril. E que a estação vindoura não repita os anos de 1966 e 1967, quando o Rio ficou debaixo d’água, registrando alto índice de doenças por conta das enxurradas e até a queda de um prédio no bairro de Laranjeiras.
Mesmo sendo uma garota de 14 e 15 anos, respectivamente, nos anos citados, minha memória não apagou o tormento do dia a dia dos cariocas. A situação era tão grave que cruzou a ditadura com as intempéries, cujo produto foi a falta de gêneros alimentícios nos mercados e a contenção de luz, através de apagões intermináveis.
Pilhada pelos amigos que sabiam que não se passa os 15 anos em vão, resolvi fazer uma festa como nada estivesse acontecendo. Como não havia luz, João Ricardo, mais conhecido como Louro, providenciou ‘lampiões de camisa’, que iluminam de forma correspondente a 40 velas, presumo. Espalhamos os lampiões pela casa, já que a festa tinha como base central a sala, mas quem não quisesse dançar poderia papear nos quartos.
Minha adorável madrinha fez um vestido lindo, amarelo, curtíssimo como pedia a moda, de tecido leve e esvoaçante. Não posso me privar de dizer que todas as meninas estavam maravilhosas, maquiadas como uma rainha de bateria, pernas à mostra para compensar a falta de praia naqueles dias de chuva forte.
Por outro lado, atrás das Cinderelas habitavam vigorosas gatas borralheiras, uma vez que não tínhamos também água ao dispor. O racionamento ficava ao bel-prazer dos governantes. Assim, fazíamos fila indiana na rua onde fica agora a Maison Elle et Lui, no Leblon. Naquela época, era uma ladeira de terra batida, com uma biquinha. Sim, uma bica que jorrava intensamente e provia panelas, galões, regadores e similares.
A ditadura cerceava os alimentos, de forma que minha mãe mandava as três filhas para o mercado ‘Mar e Terra’, para ter em casa três quilos de arroz, três de açúcar, três de manteiga e uma despensa regular. A grande maioria não vai lembrar-se destes detalhes. A juventude passa a borracha nas cinco horas de tortura a favor dos cinco minutos de prazer. Praxe da mente humana. Uma síndrome de Estocolmo coletiva, melhor dizendo.
Mas a primavera não quis adentrar com o regozijo que lhe cabia. Chove, o tempo está cinzento e preferimos as lembranças à realidade que se esboça.
Claudia Antunes é carioca, jornalista e já trabalhou em jornais como Jornal da Tarde (SP), O Estado de S. Paulo, Jornal do Commercio e Tribuna da Imprensa e nas Revistas Manchete, Fatos & Fotos e Visão (atual Isto É). Jardim Botânico do Rio de Janeiro e INEA.
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