A nossa incrível evolução acadêmica e tecnológica, não foi capaz de provocar em nossas vulcânicas emoções nem um tipo de transformação na balança dos julgamentos. No que se refere à nossa capacidade de oferecer ao outro, equidade e justiça, pautadas no mesmo peso de crime, castigo, mérito ou indulgência que tão ruidosamente exigimos em causa própria, somos um desastre de proporções meteóricas.
Cada um de nós é capaz de saber exatamente a dimensão, a duração, a intensidade e a valia de cada batalha nossa impetrada no desenrolar dos dias. Apenas nós somos capazes de entender o que sentimos ; de ser indulgente com nossos medos, ainda que pareçam tolos; de mensurar nossos esforços para vencer limitações inatas ou impostas; de intervir no momento exato onde mora o limiar entre a necessidade de suporte e a autonomia conquistada; mais ninguém tem essa clara percepção de nós. Somos verdadeiros mistérios, uns para os outros. Construímos um casulo tão impenetrável que nos condenamos a um isolamento voluntário; tudo isso por medo de parecermos fracos, de revelar o que não sabemos e de quebrar aos olhos do outro a nossa idealizada imagem.
É bem verdade que são as grandiosas batalhas que vão alinhavando nossa vida; bordando lembranças com retalhos coloridos de memória; mantendo-nos enraizados em nossas essências, por meio de pontos firmes, tecidos de forma tão caprichosa. No entanto, são as pequenas lutas, os embates “inocentes” do correr das horas que nos conferem a humanidade. É das pequenas dores, que por vezes não passam de um formigamento na alma, que nos tornamos mais ou menos aptos para avaliar a escala de sofrimento que conseguimos bancar; e, muito mais importante: reconhecer no outro, ainda que ele sofra em silêncio, o momento exato de estender a mão, enlaçar no abraço e garantir, caso a inevitável queda venha a ocorrer, que haverá amparo amoroso, nenhum julgamento e, depois (só depois), a possibilidade de ser ouvido, seja para um desabafo ou uma confissão.
O fato é que vestimos, com a maior desenvoltura, orgulhosas togas morais, dentro das quais nos quedamos absolutamente familiarizados e confortáveis. Com que facilidade, apontamos o dedo na exata direção dos deslizes, falhas e fraquezas alheias! Tão fácil julgar! Tão automático condenar. O infortúnio do outro desperta em nós a curiosidade e, a depender da nossa estatura virtuosa na ocasião, somos também capazes de nos comover, demonstrar empatia e até sermos solidários. Mas é a curiosidade nosso combustível renovável. O acontecimento em si nos mobiliza, atiça a imaginação desperta o desejo de estar presente, sem pertencer.Alguns de nós, menos empedernidos conseguimos até deslocar o foco de nossas valiosas existências para dispor nosso tempo, atenção e por que não, algum auxílio material no socorro de quem descarrilou e perdeu o posto de ser humano correto, valoroso e vencedor!
O cenário é de tirar o sono, se porventura nos arriscarmos a tirar a casca de “normalidade” e dizer ao outro, olho no olho: “Minhas fraquezas são tantas, que talvez eu não as conheça todas; mas criei coragem para te dizer que eu me arrisco a me perder de mim porque tenho medo de não ver admiração nos seus olhos diante dos meus feitos. Eu finalmente entrego meu coração, instável e imperfeito em suas mãos, porque te honro com a minha confiança; e posso apenas garantir que, tendo me libertado de sua adoração posso, enfim, revelar meu lado humano e lindo. Humano porque sangra e cicatriza; lindo porque é de verdade.”
E se formos valentes assim, a ponto de enfrentar essa travessia, olharemos encantados uns para os outros; cada um com as mãos preenchidas por um coração vivo e curioso: o coração do outro. Dentro do peito, no lugar do músculo que andava exausto, uma revoada de passarinhos; a leveza do voo sem itinerário, trazendo pra dentro de nós a luz diáfana que suaviza o olhar e o calor morno de um colo que fortalece a coragem.
Seremos absurdamente felizes quando desistirmos de nos acorrentar uns aos outros em jaulas de certezas que não passam de grades enferrujadas; certezas acerca de uma infinidade de verdades mofadas e insustentáveis. Seremos pessoas mais vivas, fluidas e íntimas dos sentimentos de cura que permeiam o amor. Tomara não nos demoremos demais para desancorar nossas almas, da intolerância que aprisiona e da perfeição que aniquila o desejo. Tomara sejamos audaciosos o suficiente para mergulhar na confusão do outro de mãos entrelaçadas com ele; conhecer seus cantos escuros; arranhar nossa casca de estereótipos, já tão craquelada; estar em seu lugar mais tenebroso e escondido… E, então, justamente pela maravilhosa oportunidade de ter vislumbrado a escuridão do outro, estar pronto para voltar do inferno e oferecer-se inteiro, sem a desumana expectativa da excelência, mas com a disposição de aprender e admitir que perdoar é libertar a alma de velar o sonho morto para seguir adiante.
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