A personagem principal da sua vida

Percebeu que a fatalidade da vida nem sempre vem na forma de um acidente. Reza a lenda, que quando as pessoas se encontram diante da morte eminente, são iluminadas por um olhar renovado sobre a vida.

Mas agora, ela via a fatalidade branda. Ela estava nas rugas que se apontavam ao redor dos seus olhos, nas marcas que compunham o seu rosto, o seu corpo, cada traço seu. Ela se insinuava na elasticidade que se perdia sutilmente com o tempo, nas dores na coluna, na tensão dos ombros.

A fatalidade estava no oco do peito, que amplificava os ecos do coração, nos odores que se transformavam, no opaco crescente dos cabelos. Ela estava nas memórias acumuladas, um tanto quanto diluídas nos excessos das experiências rotineiras.

A fatalidade estava na vontade desorientada em meio à avalanche de responsabilidades. Na esperança comida pelas traças. Nas roupas desbotadas. No cansaço. Estava cansada. Cansada demais de esperar. Voltava à infância, quando tudo começou. Recebia deslumbrada as narrativas dos personagens principais. Tão distintas, tão semelhantes.

O coração ambicioso comprava iludido aquele sonho de ser especial: de ser encontrada, de ser surpreendida, de ser afortunada por um acontecimento inesperado.

Estava nos contos de fada, onde era adormecida, presa em uma torre, caçada por bruxas, e alguém inusitado vinha lhe salvar. Estava nos contos e mitos, nos quais recebia uma benção de deuses, uma prenda das fadas, a intervenção de um sábio que lhe confiava um novo destino.

Estava nas reportagens rotineiras, nos casos burburinhos, das figuras encontradas por agentes, dos talentos comprados por milionários, das genialidades descobertas ao acaso. Haviam muitos desses mitos da espera, nos quais o ser passivo aguardava a sua estrela cadente.

Agarrou-se a esse personagem frágil, incompleto, esperando por salvação. Pensou, até mesmo, que poderia ser um acidente, uma fatalidade explícita a vir colocá-la diante do acaso da vida finita e despertá-la daquele torpor, que acreditava ser o seu estado natural.

Riu saudosista, fazendo piada consigo mesma, de que até para chegar ao mundo esperou que os tirassem de lá, sem forçar as contrações que a trariam à luz por um movimento próprio.

Sempre fora inteira expectativa. Só agora que parou, ali, diante do espelho, tentando ver além de si mesma, e se perguntou sobre o destino daqueles personagens “salvadores”. Qual era a narrativa dos guerreiros, dos príncipes, das fadas, dos sábios, dos acidentes?

Qual era a narrativa daquilo que trazia a surpresa, aquela luz tão desejada, aquele movimento irresistível? Qual era a narrativa daquilo que vinha, daqueles que aconteciam, em vez de esperar?

Mais de 35 anos se passaram e ela esperava. Aos seis anos, esperava que uma fada lhe viesse revelar um poder escondido. Aos dez, esperava que um sábio lhe destinasse uma missão incrível. Aos quinze, esperava um namorado que lhe trouxesse flores. Aos dezessete, esperava que os amigos lhes fizessem uma festa surpresa. Aos vinte, tinha esperança de que, nela, um talento incrível fosse descoberto por um superior do trabalho – expectativa que perdurou ainda por muito tempo.

Aos vinte e cinco, ela aguardava um pedido de casamento romântico e repentino. Aos vinte e sete, fantasiava encontrar um bilhete premiado na rua, que a tornasse milionária e a permitisse viajar o mundo. Aos trinta, esperava atenta que fosse abordada por um estranho e este lhe fizesse a proposta que causaria uma reviravolta em sua vida.

Passados os trinta anos, esperava, desesperadamente, qualquer coisa, qualquer surpresa, qualquer acontecimento fora do comum que lhe desvelasse uma chama de vida capaz de inflamar e iluminar toda a sua existência. Mas as coisas corriam calmas, mornas, esparsas.

Começou a silenciar a expectativa para abrandar as dores que a corroíam. Silenciados todos aqueles ideais passivos, começou a escutar e surpreendeu-se: eram muitos os que esperavam, como ela, esperavam um por vir surpreendente. Eram muitos os que se identificavam com esse ser por ser descoberto por um olhar outro.

Estava cansada. Cansada demais. E hoje, parou diante do espelho, não para pintar o rosto, cobrindo-lhe as imperfeições, não para conferir o quanto estava adequada para um encontro íntimo, social, profissional. Não para avaliar o quanto havia envelhecido.

Iluminada pelo silêncio da própria dor, daquele cansaço que se instalava languido pelo seu corpo, parou diante do espelho para ver-se de fora – com todas as imperfeições e inadequações que costumava camuflar.

Procurava em suas marcas, no fundo dos seus olhos, nas formas do reflexo, no além que o espelho sugeria enigmático, aquela chama, que algum outro desconhecido não apareceu para encontrar. Estava por ali, ela sabia, em algum lugar. Se nada acontecia, se nada lhe vinha surpreender ou salvar do mormaço do tempo a consumindo lentamente, era ela quem deveria ser a “salvação” que esperava. Era ela quem deveria ser a surpresa que almejava.

Era ela que precisaria descobrir seus poderes escondidos, destinar-se missões incríveis, plantar flores, dar festas surpresas aos amigos, identificar e incentivar talentos incríveis, causar em sua vida as reviravoltas que tanto esperava, propor-se celebrar um compromisso consigo mesma, viajar sem esperar permissão.

Estava cansada. Cansada demais. Mas, quando parou diante do espelho, sabia que um dos caminhos possíveis era nutrir a frustração das esperas vãs, até que evoluíssem para a amargura. Iluminada pelo silêncio da própria dor, olhando-se fundo nos olhos, com toda a coragem que é necessária para olhar-se fundo nos olhos, viu no espelho que viveu enganada.

O personagem principal não era aquele que esperava por ser salvo, não era aquele afortunado por um acaso – ele era a fortuna, ele era a surpresa. O personagem principal não era arrastado pelos acontecimentos – ele acontecia. Naquele dia, parada diante do espelho, ela descobriu que tinha sorte: estava destinada a ser a personagem principal da sua própria vida.







Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.