Milton Santos costumava dizer que “a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une”. Sendo assim, para aqueles que detêm o monopólio da força, na manutenção do poder, é indispensável que busquem alimentar a fragilidade levantada por Milton, de modo que torne o povo alienado e subserviente aos seus interesses.
Essa alienação é construída no livro 1984 de Orwell, pelo “estado de ódio”, em que a sociedade é erigida sob pilares contrários à paz, fazendo com que os indivíduos sejam influenciados a viverem em constantes ódio e medo. Há uma série de atividades ligadas ao ódio, como os dois minutos de ódio, executados diariamente, e a semana do ódio.
Nessas ocasiões, de forma automatizada e repetitiva, os indivíduos são impelidos, pelo Partido, a exprimirem seu ódio pelos inimigos deste. O próprio protagonista da história, Winston Smith, que é contrário às ideias do Partido, em dada situação dos dois minutos do ódio, vê-se gritando de forma inflamada contra os opositores do Partido, comportando-se de acordo com a massa ou, como ele diz, “[…] fazer o que todo mundo fazia, era uma reação instintiva”.
Desse modo, através da ingerência da vida das pessoas e da repetição das suas artimanhas políticas, o Partido, em 1984, tornava os indivíduos facilmente alienados do seu discurso. Esse recurso é o mesmo utilizado no Admirável Mundo Novo de Huxley, em que, por meio da repetição, as pessoas internalizam as ideias que lhes são passadas como verdades, afinal, “sessenta e duas mil repetições formam uma verdade”.
Ao submeterem os indivíduos ao estado de ódio (ou estes se deixarem submeter), o Partido consegue fazer com que eles esgotem suas energias com o discurso alienante, de maneira que não consigam ter energia e tempo para perceber as correntes que os prendem. Assim, o Partido se mantém no poder com uma oposição muito débil, que pouco pode fazer para mudar a situação estabelecida.
O cenário político brasileiro atual comporta-se do mesmo modo que o Partido, em 1984. Alimenta-se o ódio por qualquer posição contrária a suas “ideologias”, fazendo com que haja uma ruptura dualista entre “petralhas” e “coxinhas”. Basta qualquer manifestação de pensamento, para que as brigas comecem e tomem horas a fio, sobretudo no Facebook. Até mesmo declarações sem cunho político-partidário geram comentários que apenas confirmam que vivemos no estado de ódio da distopia de Orwell.
Sem nos darmos conta (ou sem querer nos darmos) estabelecemos um maniqueísmo, fragmentando o povo entre bem e mal, sendo que o discurso que alimenta esse ódio é produzido tão somente por demônios, de tal forma que escolher um lado e defendê-lo como o lado do “bem” é, no mínimo, ingenuidade, para não dizer mau-caratismo mesmo. Enquanto o povo se divide, nessa guerra de ódio, os partidos revezam-se no poder, com pouquíssima mudança de ideologia e sem qualquer pensamento que privilegie a probidade e o bem comum.
Essa fragilidade nos laços que mantêm coesos o tecido social é essencial para que a classe política imunda que o Brasil possui continue no poder, uma vez que, como diz O’Brien, membro do Partido interno, a Winston, “o poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender”. Assim, ao darmos vazão para o discurso da classe política como um todo, estamos nos fragilizando enquanto povo e permitindo que a classe política despedace o nosso poder de crítica.
Para o Partido, no livro, ou para a classe política brasileira, seja situação ou oposição, de direita ou de esquerda (se isso quer dizer ainda alguma coisa), o poder se dá pela construção de “um mundo de medo, traição e tormento, um mundo de pisar ou ser pisado, um mundo que se tornará cada vez mais impiedoso, à medida que se refina”.
Dessa forma, devemos reconsiderar o modo como facilmente nos ludibriamos e, como disse Milton, tornamo-nos cegos que apenas identificam as diferenças que nos formam e esquecem que a soberania é popular, mas, se o povo está se digladiando em uma guerra de ódio, o poder passa a ser daqueles que conseguem fazer desse ódio a fonte da sua vitória.
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