Categories: Erick Morais

Petralhas x Coxinhas : o estado de ódio no Brasil pelos olhos de George Orwell

Milton Santos costumava dizer que “a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une”. Sendo assim, para aqueles que detêm o monopólio da força, na manutenção do poder, é indispensável que busquem alimentar a fragilidade levantada por Milton, de modo que torne o povo alienado e subserviente aos seus interesses.

Essa alienação é construída no livro 1984 de Orwell, pelo “estado de ódio”, em que a sociedade é erigida sob pilares contrários à paz, fazendo com que os indivíduos sejam influenciados a viverem em constantes ódio e medo. Há uma série de atividades ligadas ao ódio, como os dois minutos de ódio, executados diariamente, e a semana do ódio.

Nessas ocasiões, de forma automatizada e repetitiva, os indivíduos são impelidos, pelo Partido, a exprimirem seu ódio pelos inimigos deste. O próprio protagonista da história, Winston Smith, que é contrário às ideias do Partido, em dada situação dos dois minutos do ódio, vê-se gritando de forma inflamada contra os opositores do Partido, comportando-se de acordo com a massa ou, como ele diz, “[…] fazer o que todo mundo fazia, era uma reação instintiva”.

Desse modo, através da ingerência da vida das pessoas e da repetição das suas artimanhas políticas, o Partido, em 1984, tornava os indivíduos facilmente alienados do seu discurso. Esse recurso é o mesmo utilizado no Admirável Mundo Novo de Huxley, em que, por meio da repetição, as pessoas internalizam as ideias que lhes são passadas como verdades, afinal, “sessenta e duas mil repetições formam uma verdade”.

Ao submeterem os indivíduos ao estado de ódio (ou estes se deixarem submeter), o Partido consegue fazer com que eles esgotem suas energias com o discurso alienante, de maneira que não consigam ter energia e tempo para perceber as correntes que os prendem. Assim, o Partido se mantém no poder com uma oposição muito débil, que pouco pode fazer para mudar a situação estabelecida.

O cenário político brasileiro atual comporta-se do mesmo modo que o Partido, em 1984. Alimenta-se o ódio por qualquer posição contrária a suas “ideologias”, fazendo com que haja uma ruptura dualista entre “petralhas” e “coxinhas”. Basta qualquer manifestação de pensamento, para que as brigas comecem e tomem horas a fio, sobretudo no Facebook. Até mesmo declarações sem cunho político-partidário geram comentários que apenas confirmam que vivemos no estado de ódio da distopia de Orwell.

Sem nos darmos conta (ou sem querer nos darmos) estabelecemos um maniqueísmo, fragmentando o povo entre bem e mal, sendo que o discurso que alimenta esse ódio é produzido tão somente por demônios, de tal forma que escolher um lado e defendê-lo como o lado do “bem” é, no mínimo, ingenuidade, para não dizer mau-caratismo mesmo. Enquanto o povo se divide, nessa guerra de ódio, os partidos revezam-se no poder, com pouquíssima mudança de ideologia e sem qualquer pensamento que privilegie a probidade e o bem comum.

Essa fragilidade nos laços que mantêm coesos o tecido social é essencial para que a classe política imunda que o Brasil possui continue no poder, uma vez que, como diz O’Brien, membro do Partido interno, a Winston, “o poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender”. Assim, ao darmos vazão para o discurso da classe política como um todo, estamos nos fragilizando enquanto povo e permitindo que a classe política despedace o nosso poder de crítica.

Para o Partido, no livro, ou para a classe política brasileira, seja situação ou oposição, de direita ou de esquerda (se isso quer dizer ainda alguma coisa), o poder se dá pela construção de “um mundo de medo, traição e tormento, um mundo de pisar ou ser pisado, um mundo que se tornará cada vez mais impiedoso, à medida que se refina”.

Dessa forma, devemos reconsiderar o modo como facilmente nos ludibriamos e, como disse Milton, tornamo-nos cegos que apenas identificam as diferenças que nos formam e esquecem que a soberania é popular, mas, se o povo está se digladiando em uma guerra de ódio, o poder passa a ser daqueles que conseguem fazer desse ódio a fonte da sua vitória.

Erick Morais

"Um menestrel caminhando pelas ruas solitárias da vida." Contato: erickwmorais@hotmail.com

Share
Published by
Erick Morais

Recent Posts

O filmaço romântico que está tocando o coração de milhões com sua trama apaixonante

Se você está à procura de um filmaço que mistura romance, humor e uma pitada…

17 horas ago

O filme intenso e saboroso da Netflix que vai te fazer ficar em casa esta noite

Se você estava procurando um bom motivo para não sair de casa hoje, saiba que…

23 horas ago

Professora causa confusão ao sugerir que estudante com dois pais é adotado

O estudante é fruto de um arranjo familiar em que a mãe biológica é irmã…

1 dia ago

Esta comédia romântica estrelada por Kate Hudson é uma das apostas certeiras na Netflix

Se você é fã de comédias românticas, provavelmente já ouviu falar de "Como Perder um…

2 dias ago

Série sedutora e envolvente da Netflix com apenas 6 episódios vai te fazer perder o ar

É impossível resistir aos seis deliciosos episódios desta série que está disponível na Netflix.

2 dias ago

Filme absurdamente lindo da Netflix tem só 14 minutos e faz as pessoas se desfazerem em lágrimas

Poucas pessoas conseguem passar pelos 14 minutos arrebatadores deste filme sem derramar uma única lágrima.

2 dias ago