Essa tarde, caminhando pela praia, lembrei-me de uma conversa logo cedo com meu filho. Pela terceira vez essa semana, me contou que havia sonhado com “sua namorada”. Perguntei se andava pensando muito nela, e a resposta imediata, do alto dos seus sete anos foi: “O tempo todo, mamãe”…

Sem saber, essa garotinha de sorte existe aqui, em nossas férias, perto do mar, entre as dunas, na areia que escorre por seus dedinhos arredondados, na risada barulhenta, nos desenhos que a água apaga. Está presente de um jeito doce, terno, verdadeiro. Pode ser que um dia seus caminhos se encontrem verdadeiramente_ ou não. Pode ser que ela nunca saiba que existiu nele.

Você já se perguntou de que forma existe por aí? De que forma é lembrado, rebobinado, editado e reprisado?

Existimos no amor que damos, na saudade que deixamos, na falta que fazemos, nos sonhos que povoamos, no desejo que despertamos, na raiva que provocamos, na preocupação que causamos, no mistério que não revelamos, na alegria que irradiamos. Existimos naqueles que amamos, nas relações _ entre amantes, pais e filhos, amigos_ que estabelecemos; e_ como poderíamos saber?_ onde nunca imaginamos.

Porque nem tudo o tempo consente que a gente viva. Nem todos os caminhos se cruzam ou consolidam. Nem tudo nos cabe. Algumas coisas não exigem resposta, nem troca, nem conhecimento ou correspondência de parte alguma. Elas simplesmente caminham conosco, nos fazem companhia e povoam nossos sonhos. É a vida que não deu as mãos, mas vai dentro da gente… (linda na melodia do Skank).

Existir em alguém é ser lembrado num dia difícil ou demasiadamente feliz; é ser recordado com ternura e por um segundo ser o ideal de perfeição daquilo que sempre se almejou; é ser gostado gratuitamente, sem exigência de reciprocidade ou retorno; aceito nas imperfeições e manias, sem cobranças ou condições. É ser prece no meio da noite; nome escrito na areia; caligrafia primária envolta em corações coloridos; canção que leva às lagrimas e alguma saudade_ do que foi vivido ou nunca aconteceu.

Uma vez li uma frase num livro, e hoje não consigo ser fiel à fonte (pois não me lembro mais), mas a frase dizia mais ou menos o seguinte: Após nossa morte, permanecemos vivos enquanto a última pessoa que ainda se lembrar de nós permanecer viva. Enquanto formos lembrança, existimos.

Infelizmente, existe o outro lado da moeda, quando a lembrança de um nome ou rosto evoca sensações desagradáveis, sentimentos soterrados, recordações funestas. Porém, aquilo que não lhe machucou, nem subtraiu ou dividiu… é parte de você também. Não faz mal lembrar. Deixar viver aí dentro. Imaginando se você existe por lá também, de um jeito bom, quem sabe preenchendo lacunas ou fazendo o quebra cabeças ter algum sentido…

A gente precisa de poesia dentro da gente. De alma perfumada e riso de criança. Ás vezes o córrego da vida precisa de sal, de algo que nos desperte por dentro. Sinta-se recompensado se conseguir sentir. Se, de alguma forma, for tocado. Se perceber uma parte de você acordando (paradoxalmente, nem que seja dormindo…) como a garotinha dos sonhos de meu menino. Tanto chão pela frente, tanta alegria e desilusão a serem vividas no decorrer dos anos… mas ainda assim, ela permanece dentro dele. Como melodia de dias felizes, tempero de momentos vazios, açúcar de horas amargas, perfume de noites futuras…

Imagem de capa: Oleksandr Berezko/shutterstock

Fabíola Simões

Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.

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