Há certamente em cada livro, em cada texto, uma ideia principal e outras adjacentes. Creio neste princípio. Que por vezes é um título, uma palavra, uma expressão, uma insignificância ou outra coisa qualquer.
A literatura é enquanto expressão humana da ideia de beleza e harmonia, um jogo no seu sentido etimológico, um jogo de signos, significados e referentes, um jogo de símbolos como o é a linguagem, portadora da esperança de comunicação entre os seres.
E todo o jogo (o ludo) é assim; a ilusão da verosimilhança, o escondermos algo enquanto agentes ativos (escritores) para que o leitor (agentes passivos) o descubra.
Com ativos e passivos apenas pretendo referir uma categoria que embora à primeira vista possa ser distinta, na verdade não o é, porque o leitor reescreve o livro que lê a partir da leitura pessoal e intransmissível que dele faz, a partir do seu grau de conhecimentos, a partir do seu afeto e emoção, a partir do seu distanciamento inicial, a partir do seu espanto de descobrir, página a página, o seu cerne, aquilo que os ingleses designam “core”.
Ora, para que a comunicação efetivamente resulte através dos textos entre o emissor e o receptor é necessário que o receptor entenda (e sinta), os códigos linguísticos emitidos. E é aqui que o crítico como agente mediador, conhecedor da técnica ou técnicas utilizadas bem como da história e da crítica, literárias, deve intervir no sentido de “iluminar” a substância do texto.
Que autores há no texto e de que forma são revelados explicitamente ou de forma implícita, através de epígrafes, indicações claras, modos obscuros, interrogações, é a matéria sob a qual gosto de questionar um texto poético. Compreender é apreender o movimento, caminhar lado a lado com o texto, de acordo com as suas dúvidas e propostas.
Por outro lado o texto é orgânico, vivo corpo violento de sede e fogo, mutável assim mesmo, e embora os seus limites se delimitem através do que diz e através da forma ou do gênero como o diz, essa sua marca de água, regenerativa, evanescente, revela-se a partir das leituras que dele fazemos, sempre outras, diversamente outras, no contexto tridimensional do registo humano no universo; tempo, espaço e perspectiva.
E é então este estar em perspectiva, dentro e fora do texto enquanto privilegiada testemunha, a escutar as ligações que no mesmo florescem, a tarefa atenta e impossível da mediação; um lugar de encontro(s), um lugar de amor.
Hirondina Joshua é uma autora moçambicana que tive o privilégio de “conhecer” através das plataformas digitais enquanto ainda preparava o lançamento do seu primeiro livro de poesia entretanto já lançado; “Os ângulos da casa”.
Aqui se falará brevemente desta obra.
Com prefácio de Mia Couto e patrocínio da Fundação Fernando Leite Couto, de apoio às primeiras obras de poetas moçambicanos, este livro é um excelente indício de uma autora com uma linguagem própria e inimitável como bem refere Mia Couto no seu sensível e emotivo prefácio, pois “a poesia já estava nela”.
Comecemos pois pela estrutura do livro uma vez que o mesmo poderá dividir-se em três partes, cada uma com uma singular epígrafe pelo que esta breve crítica seguirá o mesmo modelo, a partir de uma epígrafe geral de Fernando Pessoa, sustentada pela ideia de viagem com uma versão errática da autora.
Assim, a primeira parte do livro com a epígrafe de Eduardo White, não por acaso um excelente poeta moçambicano de referência, revela a casa (ou a alma) como território onde afluem as memórias e completam o círculo da existência; vida e morte.
Porém, esta casa é uma casa interna, a alma, um lugar edificado onde o corpo habita com os seus sentidos, daí os percebidos ângulos (através da visão), isto é, os espaços compreendidos entre a arquitetura dos materiais e das linhas que compõem a estrutura da mesma, sendo esta uma forma inteligente do sujeito poético se interrogar a si mesmo.
Este aspecto socrático de auto conhecimento percorre a primeira parte do livro pelo que a autora utiliza verbos sensitivos (ver, sentir, pensar) e substantivos relacionados com a estrutura material da casa (sala pequena, quartos, escadas, parede, varanda, aréola).
A interrogação e a inquietude do sujeito poético, reconhecendo-se e desconhecendo-se nos “ângulos da casa” e a partir dos mesmos, sob o método de observação revela igualmente uma poesia perto da sua maturação.
Devido à economia desta crítica breve destaco apenas dois poemas de entre os demais, embora a homogeneidade percorra todo o livro; poema 3 (página 15) ou o poema da página 21.
A segunda parte do livro (páginas 25 a 66) com epígrafe de Mia Couto traduz a ideia de lugar, onde a casa ou a alma, habita.
E este lugar povoado de sensações, memórias, descobertas, indagações, conduz-nos enquanto leitores para uma geografia africana, “o alto-mãe que há em mim” porque “minhas primeiras letras foram o céu e o chão”.
Esta convocação ao universo natural lembra-nos por vezes Manoel de Barros sem o sentido disruptivo e transgressor da sua poesia quanto ao significado.
Hirondina Joshua nesta segunda parte da viagem fixa precisamente esse lugar através dos elementos naturais; “planta, sol, vento, flor” onde a sua alma (a sua casa) se fixa na medida dos afetos e memórias; “visto na epiderme a gestação nua da raça”.
A terceira via ou viagem inicia-se com uma epígrafe de Herberto Helder que nos diz que as casas são rios fulgurantes que silenciosamente caminham para algo que não existe “como uma secreta eternidade”.
Veia, pulmão, medula, boca, carne, mandíbula são substantivos que refletem um sentido orgânico à última parte desta viagem poética e naturalmente convergem e divergem do poeta epigrafado num despojamento do seu sentido.
Veja-se por exemplo o poema (página 82) que começa assim; “encheram as mãos e as cabeças” cujo sentido se inscreve na lógica de representação herbartiana, belíssimo poema que fere e nos convoca para a dor do mundo “…as mãos sanguinárias eram limpas”.
E plenamente a viagem conduz-nos a uma cerimônia simples de iniciação através da palavra e do signo como instrumento para se ser e se estar.
Em resumo, trata-se de uma primeira obra cuja coesão e heterogeneidade trazem ao universo da poesia, uma outra forma de respirar.
Termino com o poema que fecha e abre o livro.
“Quando digo céu
abre-se um céu diante de mim
a fala abre-se diante do céu
eu abro-me na fala.
Quando digo céu
algo transforma-se em céu
sem eu me aperceber
fico céu
e neste espaço largo
não consigo me perceber outra coisa
nem coisa alguma;
logo: estou um céu.
Digo céu
e torno ao início:
início com um sol
depois pego no outro astro.”
César Pires 2016
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