Tinha um centro de macumba perto de casa. Havia sessões às sextas-feiras, e aquela batucada dos ritos naturalmente chamava a atenção de uma criançada que ficava solta e desocupada na rua. Eu estava nesse meio. Cheios de energia (e de ruindade, obviamente, Kkk), estávamos nós, eu e meus amigos, toda semana indo lá atrapalhar o ritual dos pobres praticantes. Ficávamos longos minutos olhando no buraco da fechadura. Quando os pais e as mães de santo começavam a cantar ou a rezar, nós começávamos a gritar ensandecidos, até que vinha alguém enfurecido nos enxotar. Era a hora de esticar as canelas e correr, mas tínhamos muita energia e voltávamos. Repetíamos tudo, de novo, e de novo. Essa fase durou um considerável tempo. Imaginem como aqueles ritualistas nos amavam?
A repressão pura não faz verão. Era advertida a não importunar os pais de santo, mas não era educada conscientemente em casa a respeitar a individualidade alheia, quiçá de um grupo ou de uma cultura, quiçá de um rito religioso em um país legalmente laico. Essa é uma realidade presente em muitas famílias brasileiras, infelizmente. No meu caso, compreendo que meus pais deram-me seguramente aquilo que puderam em suas condições. Eles simplesmente não podiam mais. Com baixa escolaridade e sobreviventes de uma vida precária, não havia muito o que fazer.
Quando a educação formal de um lugar falha – e falo dos sistemas educacionais governamentais regulares, geralmente organizados em escolas e faculdades, há as outras “educações” que podem agregar e transmitir os valores que faltam. Exemplos disso são a família e a igreja. Até mesmo as educações mais informais contam, como o que assimilamos pelo contato com os amigos, pelas leituras que fazemos ou pelo que assistimos na televisão.
Hoje compreendo que durante a infância eu era um ser para dentro. Religiosa. Rezava terços. Adorava uma procissão e quis ser noviça, entretanto não sabia como lidar com o diferente. É fácil e triste perceber que tudo que não emula o Deus cristão, as imagens dos santos ou a “Pietà” de Michelangelo – com o cristo morto e nu nos braços, é renegado sumariamente por parte considerável dos cristãos. Vira ocultismo.
Estava longe de saber que aquilo que vivia e sentia quando criança era, na verdade, uma semente de intolerância religiosa. E mais profundo ainda, que levado a outras consequências indignas isso é crime de ódio, fere a liberdade e a dignidade humanas. Como as explicações sobre o diferente não me vieram a tempo, eu perturbei, e muito! Minha mãe hoje é amiga da dona do tal centro e, mesmo quase trinta anos depois, sinto vergonha de abordar aquela boa senhora e dizer que sou uma das tais maritacas do passado. Felizmente isso mudou e ficou no passado. O conhecimento pode ser libertador. A educação estreita a ignorância.
É necessário no mínimo saber que a liberdade de culto no Brasil é assegurada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição Federal, no seu Art. 5, inc. VI – “ É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Além disso, por força desse dispositivo constitucional, diz-se que o Brasil é um Estado laico, ou seja, o país é legalmente obrigado a permitir a liberdade religiosa.
A pergunta que intitula o presente texto encontra resposta nisso. Intolerância religiosa é crime. Não devemos desrespeitar ao ponto de discriminar alguém por sua religião, caso contrário isso é configurado crime. A Lei 9.459, de 1997, considera crime a discriminação ou o preconceito contra religiões. Ninguém pode ser discriminado por seu credo religioso. O crime de discriminação religiosa é inafiançável, ou seja, não é possível pagar fiança para responder em liberdade. Além disso, é um crime imprescritível, ou seja, o crime não deixa de sê-lo com o decorrer do tempo, podendo o acusado ser punido a qualquer momento que a culpa for provada. A pena prevista para este crime é de reclusão por um a três anos e multa.
Respeitar o credo religioso alheio significa preservar a dignidade da pessoa humana. É saudável a existência dos diversos credos, bem como a falta deles também. Contudo, há pessoas de personalidades autoritárias, que parecem querer “obrigar” os outros a seguirem suas doutrinas de forma impositiva e inconveniente. Certamente não compreendem que religião não mede ninguém, absolutamente. No julgamento delas, querem convencer de que sua religião é a “certa” – seja lá o que isso for. Ocorre que escolher a fé como elemento de vida é uma decisão estritamente pessoal. O sentido da fé é interpretado por cada um de maneira diferente. Há até quem não sinta essa necessidade. O que não pode é ignorar a individualidade das pessoas e considerar-se superior pela própria escolha. Também não pode se achar no “direito” de desmoralizar alguém ou símbolos religiosos de outras denominações, de agredir física e moralmente, de perseguir e apelar para outros fanatismos. Sobretudo em uma sociedade que busca a igualdade de direitos e a evolução isso não pode ser aceito.
Em nosso caso, entretanto, é cotidianamente difícil fazer valer a lei nesse aspecto. Percebe-se que parcela da população tem sofrido drasticamente com a intolerância, principalmente seguidores das religiões oriundas da África, como candomblé e umbanda. Infelizmente algumas instituições religiosas protestantes aqui no Brasil elegeram os credos africanos para demonizar. Denominam os cultuados deuses africanos de demônios, fermentando cada vez mais discórdias e preconceitos desnecessários.
Queremos uma sociedade mais pacífica ou bélica? A palavra religião veio do latim religare ( atar ou ligar com firmeza ). Quando desrespeitamos, discriminamos ou matamos alguém por ele não estar em concórdia conosco, não é religião o que estamos praticando – e isso serve em qualquer contexto do mundo. Não era apenas de mim, quando criança, que religiões e ritos como a macumba sofriam rejeição, o que leva a pensar que o Estado precisa agir educativamente para reforçar desde cedo esses valores de respeito.
Ministério da Educação e governos estaduais e municipais podem e devem investir numa educação religiosa transversal, que abranja o ensino de diferentes religiões e práticas espirituais, bem como a livre opção pela não crença, a fim de formar crianças e adolescentes mais respeitosos e conscientes. Estudar religião e espiritualidade não é secundário. A partir do conhecimento das possibilidades de fés transcendentais é possível criar uma cultura de respeito mútuo. Uma sociedade com mais respeito e civilidade, por sua vez, tende a desenvolver-se melhor humana e economicamente.