Denise Araújo

Por que devemos respeitar a religião alheia?

Tinha um centro de macumba perto de casa. Havia sessões às sextas-feiras, e aquela batucada dos ritos naturalmente chamava a atenção de uma criançada que ficava solta e desocupada na rua. Eu estava nesse meio. Cheios de energia (e de ruindade, obviamente, Kkk), estávamos nós, eu e meus amigos, toda semana indo lá atrapalhar o ritual dos pobres praticantes. Ficávamos longos minutos olhando no buraco da fechadura. Quando os pais e as mães de santo começavam a cantar ou a rezar, nós começávamos a gritar ensandecidos, até que vinha alguém enfurecido nos enxotar. Era a hora de esticar as canelas e correr, mas tínhamos muita energia e voltávamos. Repetíamos tudo, de novo, e de novo. Essa fase durou um considerável tempo. Imaginem como aqueles ritualistas nos amavam?

A repressão pura não faz verão. Era advertida a não importunar os pais de santo, mas não era educada conscientemente em casa a respeitar a individualidade alheia, quiçá de um grupo ou de uma cultura, quiçá de um rito religioso em um país legalmente laico. Essa é uma realidade presente em muitas famílias brasileiras, infelizmente. No meu caso, compreendo que meus pais deram-me seguramente aquilo que puderam em suas condições. Eles simplesmente não podiam mais. Com baixa escolaridade e sobreviventes de uma vida precária, não havia muito o que fazer.

Quando a educação formal de um lugar falha – e falo dos sistemas educacionais governamentais regulares, geralmente organizados em escolas e faculdades, há as outras “educações” que podem agregar e transmitir os valores que faltam. Exemplos disso são a família e a igreja. Até mesmo as educações mais informais contam, como o que assimilamos pelo contato com os amigos, pelas leituras que fazemos ou pelo que assistimos na televisão.

Hoje compreendo que durante a infância eu era um ser para dentro. Religiosa. Rezava terços. Adorava uma procissão e quis ser noviça, entretanto não sabia como lidar com o diferente. É fácil e triste perceber que tudo que não emula o Deus cristão, as imagens dos santos ou a “Pietà” de Michelangelo – com o cristo morto e nu nos braços, é renegado sumariamente por parte considerável dos cristãos. Vira ocultismo.

Estava longe de saber que aquilo que vivia e sentia quando criança era, na verdade, uma semente de intolerância religiosa. E mais profundo ainda, que levado a outras consequências indignas isso é crime de ódio, fere a liberdade e a dignidade humanas. Como as explicações sobre o diferente não me vieram a tempo, eu perturbei, e muito! Minha mãe hoje é amiga da dona do tal centro e, mesmo quase trinta anos depois, sinto vergonha de abordar aquela boa senhora e dizer que sou uma das tais maritacas do passado. Felizmente isso mudou e ficou no passado. O conhecimento pode ser libertador. A educação estreita a ignorância.

É necessário no mínimo saber que a liberdade de culto no Brasil é assegurada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição Federal, no seu Art. 5, inc. VI – “ É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Além disso, por força desse dispositivo constitucional, diz-se que o Brasil é um Estado laico, ou seja, o país é legalmente obrigado a permitir a liberdade religiosa.

A pergunta que intitula o presente texto encontra resposta nisso. Intolerância religiosa é crime. Não devemos desrespeitar ao ponto de discriminar alguém por sua religião, caso contrário isso é configurado crime. A Lei 9.459, de 1997, considera crime a discriminação ou o preconceito contra religiões. Ninguém pode ser discriminado por seu credo religioso. O crime de discriminação religiosa é inafiançável, ou seja, não é possível pagar fiança para responder em liberdade. Além disso, é um crime imprescritível, ou seja, o crime não deixa de sê-lo com o decorrer do tempo, podendo o acusado ser punido a qualquer momento que a culpa for provada. A pena prevista para este crime é de reclusão por um a três anos e multa.

Respeitar o credo religioso alheio significa preservar a dignidade da pessoa humana. É saudável a existência dos diversos credos, bem como a falta deles também. Contudo, há pessoas de personalidades autoritárias, que parecem querer “obrigar” os outros a seguirem suas doutrinas de forma impositiva e inconveniente. Certamente não compreendem que religião não mede ninguém, absolutamente. No julgamento delas, querem convencer de que sua religião é a “certa” – seja lá o que isso for. Ocorre que escolher a fé como elemento de vida é uma decisão estritamente pessoal. O sentido da fé é interpretado por cada um de maneira diferente. Há até quem não sinta essa necessidade. O que não pode é ignorar a individualidade das pessoas e considerar-se superior pela própria escolha. Também não pode se achar no “direito” de desmoralizar alguém ou símbolos religiosos de outras denominações, de agredir física e moralmente, de perseguir e apelar para outros fanatismos. Sobretudo em uma sociedade que busca a igualdade de direitos e a evolução isso não pode ser aceito.

Em nosso caso, entretanto, é cotidianamente difícil fazer valer a lei nesse aspecto. Percebe-se que parcela da população tem sofrido drasticamente com a intolerância, principalmente seguidores das religiões oriundas da África, como candomblé e umbanda. Infelizmente algumas instituições religiosas protestantes aqui no Brasil elegeram os credos africanos para demonizar. Denominam os cultuados deuses africanos de demônios, fermentando cada vez mais discórdias e preconceitos desnecessários.

Queremos uma sociedade mais pacífica ou bélica? A palavra religião veio do latim religare ( atar ou ligar com firmeza ). Quando desrespeitamos, discriminamos ou matamos alguém por ele não estar em concórdia conosco, não é religião o que estamos praticando – e isso serve em qualquer contexto do mundo. Não era apenas de mim, quando criança, que religiões e ritos como a macumba sofriam rejeição, o que leva a pensar que o Estado precisa agir educativamente para reforçar desde cedo esses valores de respeito.

Ministério da Educação e governos estaduais e municipais podem e devem investir numa educação religiosa transversal, que abranja o ensino de diferentes religiões e práticas espirituais, bem como a livre opção pela não crença, a fim de formar crianças e adolescentes mais respeitosos e conscientes. Estudar religião e espiritualidade não é secundário. A partir do conhecimento das possibilidades de fés transcendentais é possível criar uma cultura de respeito mútuo. Uma sociedade com mais respeito e civilidade, por sua vez, tende a desenvolver-se melhor humana e economicamente.

Denise Araujo

Sou Denise Araujo e não tenho o hábito de me descrever. Não sei se sei fazer isso, mas posso tentar: mais um ser no mundo, encantada pelas artes, apaixonada pelos animais, sonhadora diuturna, romântica incorrigível, um tanto sensível, um tanto afetuosa, um tanto criança ...

Share
Published by
Denise Araujo

Recent Posts

Série sedutora e envolvente da Netflix com apenas 6 episódios vai te fazer perder o ar

É impossível resistir aos seis deliciosos episódios desta série que está disponível na Netflix.

5 horas ago

Filme absurdamente lindo da Netflix tem só 14 minutos e faz as pessoas se desfazerem em lágrimas

Poucas pessoas conseguem passar pelos 14 minutos arrebatadores deste filme sem derramar uma única lágrima.

6 horas ago

Qual é a melhor maneira de converter imagem em texto?

Como estudantes, muitas vezes nos deparamos com imagens de texto que talvez precisemos incluir em…

7 horas ago

Ozymandias: O poema de 200 anos repleto de lições sobre o futuro da humanidade

O poema "Ozymandias", escrito por Percy Shelley em 1818, traz à tona reflexões sobre a…

22 horas ago

Filme de “lavar a alma” disponível na Netflix vai transformar o seu dia

Um filme que pode ser visto por toda a família e que toca o coração…

1 dia ago

Autor de atentado em Brasília queria matar Alexandre de Moraes’, diz ex-mulher

Homem que realizou ataque com explosivos esteve em acampamentos golpistas em Santa Catarina e deixou…

1 dia ago