Por que em casa de ferreiro o espeto é de pau?

Todos nós já ouvimos esses velhos e conhecidos ditados: “em casa de ferreiro o espeto é de pau” ou “santo de casa não faz milagre”. Tais ditos populares deixam claro o pensamento do senso comum de que dificilmente as habilidades profissionais que uma pessoa dispõe conseguem ser colocadas em prática de maneira eficiente quando levadas para dentro do círculo familiar ou até mesmo quando estão diretamente envolvidos nos próprios problemas.

Entre psicólogos, por exemplo, é comum termos dificuldade de ajudar nossos próprios familiares quando estes estão passando por problemas psíquicos e comportamentais diversos. Todo nosso conhecimento não surte o menor efeito, ou então, não somos levados à sério pelos membros da família.

Em relação a nossa própria personalidade também possuímos pontos cegos, cometemos erros e precisamos igualmente de ajuda quando não conseguimos avançar sozinhos no nosso caminho de realização pessoal. Isto é, até mesmo os profissionais que são especializados no comportamento humano, precisam compreender a sua própria humanidade!

Outra questão que é bastante comum ouvirmos no consultório é de que a mudança só começou a acontecer depois que a pessoa começou a fazer terapia, mesmo que outras pessoas já tivessem trazido o problema à tona ou dado conselhos úteis a quem apresentava-se em sofrimento e sem saber o que fazer.

O senso comum traz uma sabedoria que, muitas vezes, remete a uma questão de ordem psicológica e comportamental que merece a nossa atenção. Pois, afinal de contas, pode haver alguma explicação para não sermos ferreiros ou milagreiros em nossos próprios territórios?

Quando abordamos esse fenômeno por meio dos conhecimentos da psicologia junguiana conseguimos encontrar alguns elementos que nos ajudam a compreender esse efeito.

Primeiramente, precisamos entender como se processam os relacionamentos. Neste sentido, qualquer relação que construímos envolverá uma complexa dinâmica afetiva e emocional, que advém de conteúdos conscientes e inconscientes que acabam sendo projetados sobre a outra pessoa. Este podem ser pensamentos, ideias, sentimentos, imagens que fazemos do outro e que pode ter uma base “pessoal” ou “coletiva”. Ou seja, há àqueles conteúdos que foram construídos a partir da nossa história e experiência, mas há também os que são produtos da nossa natureza humana, sendo comuns em todos os indivíduos. Estes últimos são chamados de arquétipos.

Como afirma Jung, “há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida”. Toda a psique repousa numa base arquetípica da qual emergem os mais diversos comportamentos humanos. Apesar do arquétipo em si não ser algo visível, sua manifestação pode ser evidenciada através das repetições de padrões e semelhanças que encontramos nas vivências humanas.

Nos relacionamentos em geral é comum que nos comportemos conforme a manifestação de determinados padrões arquetípicos. E mesmo podendo haver uma variedade de relações arquetípicas ocorrendo numa mesma relação, há sempre uma dinâmica que irá prevalecer.

Numa situação familiar, por exemplo, iremos ter relações marcadas por situações bastantes típicas entre pai / filho (a); mãe / filha (o); irmão (ã) / irmã (o); avô (ó) / neto (a); esposa / esposo.

Fora do ambiente familiar teremos outras como: bem-amado / bem-amada; amigo (a) / amigo (a); mestre / discípulo; profeta / adepto; divindade / ser humano; médico / paciente; curador / ferido; etc.

Esses padrões, vão, portanto, se modelando conforme as características da relação que se estabelece. E, quando estamos no berço da nossa família, os padrões de relacionamento que irão se sobrepor são aqueles que fazem parte das próprias dinâmicas familiares.

Um filho, por exemplo, se relacionará com sua mãe dentro desta base de relacionamento familiar e projetará sobre ela suas idealizações, que podem estar ligadas a proteção e cuidado. Por outro lado, a mãe, quando olhar para o rapaz, também o verá através da imagem de filho, cabendo ali toda a gama das representações que ele tiver para ela.

Tal padrão dará o tom do relacionamento para ambos, conforme a história de vida de cada um e do desenrolar dos acontecimentos. Um dia esse filho cresce, se desenvolve a partir das relações com o ambiente escolar, profissional e social. Se forma numa profissão e ganha reconhecimento dentro da sua carreira específica. Em outras relações, conseguirá ser bem-sucedido, pois nela estabelecerá outros padrões de relacionamento que contribuirão para tal. Ou seja, se ele for um professor, quando em sala de aula, estabelecerá com seus alunos um padrão de relacionamento que ativará a dinâmica do mestre e aprendiz. A relação fluirá na direção da garantia do aprendizado e na troca no que equivale a esse modelo de relação.

Mas quando estiver em sua casa, continuará a ser visto por sua mãe através da lente de “filho” e esta dinâmica irá se sobrepor a imagem do mestre que funciona naturalmente na sala de aula. E como a relação mestre-aprendiz não consegue ser ativada dentro da relação mãe e filho, o seu espeto torna-se irremediavelmente de pau. Ele não conseguirá sucesso, se a dinâmica da relação não for ajustada. Se ambos os pares da relação não ampliarem seu olhar sobre o outro. Se o filho não conseguir ver em sua mãe uma aprendiz e se a mãe não conseguir enxergar no filho um mestre.

O exemplo citado acima é válido para qualquer outro padrão de relacionamento familiar que se estabelece e que, muitas vezes, permanece fixado e idealizado apesar da passagem do tempo e dos processos de crescimento e amadurecimento que cada membro da família conquista fora do ambiente familiar.

Portanto, a grande questão é: o ferreiro não terá sucesso se não for visto e reconhecido como tal!







Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana formada pela UFSCar. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Sedes Sapientiae e em Gerontologia pelo HSPE. CRP: 06/77338