Por Rodrigo de Souza

Freud, numa carta enviada ao amigo Romain Rolland, publicada em 1936, sob o nome de “Um distúrbio de memória na Acrópole”, analisa pormenorizadamente a sua experiência frente à realização de um sonho, para ele, impossível — conhecer a Acrópole.  Aos 48 anos, acompanhado de seu irmão, numa viagem à Trieste, nordeste da Itália, o irmão de Freud encontra um conhecido que os desanima de seguir em frente para a ilha de Corfu, em função do excesso de calor que os impossibilitaria de desfrutar do passeio, apontando-lhes Atenas como uma ótima opção. Um sentimento de raiva os abateu mas não os impediu de levar a cabo o conselho, mudando de rota. Ao chegar lá, na Acrópole, Freud sentiu-se perturbado com a experiência. Não acreditava no que via pois para ele aquilo só existia nas páginas dos livros, duvidando portanto da sua existência concreta. Depois corrige-se e afirma que não é da existência concreta das ruínas que ele duvidava, e sim da sua possibilidade de um dia poder chegar lá, visto que não dispunha de boas condições financeiras quando era jovem.

 Ao realizar o sonho, assolava-o a ideia de que “era bom demais para ser verdade”, destacando que há em todos nós uma cota de pessimismo que compromete o valor da experiência. A incredulidade o levou a estragar o prazer da viagem que culminou no distúrbio de memória. Ao analisar posteriormente o que lhe ocorrera, chegou à conclusão de que o simples fato de ele ter conhecido a Acrópole pelos livros — já o colocava em posição de superioridade em relação ao pai, — comerciante muito pobre que não teve sequer a oportunidade de alcançar a educação ginasial. Havia um sentimento de piedade e culpa por ter ido tão longe, levando-o a pensar que se tratava de algo errado e proibido.

Convido a todos para uma introspecção a esse respeito, – isto é, em relação à vivência de algo muito maravilhoso, cuja ideia de que “infelizmente as pessoas a quem mais amamos não podem desfrutar da mesma experiência”, perturba o valor da experiência. Em outras palavras, imagine se você pudesse ganhar na loteria sob a condição de não poder ajudar as pessoas mais importantes da sua vida. Que graça teria? É mais ou menos por aí que se incide o desprazer de Freud na ocasião da realização de um sonho (im) possível. Nem Napoleão Bonaparte escapou do sentimento de insuficiência articulado ao sucesso. Cito Freud, no texto supracitado:

 

 “… Napoleão, ao ser coroado imperador em Notre Dame, voltou-se para um de seus irmãos — terá sido o mais velho, José — e comentou: ‘Que diria notre père [nosso pai], se estivesse aqui hoje?'”.

 Arthur Schopenhauer destacou o fato de que o desejo tem duas formas de nos humilhar: a primeira, quando não conseguimos realizá-lo e, a segunda, quando conseguimos realizá-lo. É muito comum, em alguns casos, o sujeito queixar-se reiteradamente da possibilidade de fracassar como causa de seu sofrimento e, na medida em que a análise avança, — o que se destaca, — como causa da queixa, — é a possibilidade da realização do sucesso.

A clínica psicanalítica se apresenta como um campo privilegiado para a observação recorrente desse fenômeno, pois ela nos mostra que a felicidade nem sempre é correlata do sucesso.

Há casos nos quais o sujeito se vê confrontado com uma exigência interna impossível de ser realizada, de sucesso e gozo plenos; sem falta e falhas, e a culpa aparece como uma punição que aponta para esta impossibilidade de dar conta do impossível. Logo, o fracasso surge como uma espécie de “libertação”; de alívio, isto é, — um balão de oxigênio que renova momentaneamente o ar tóxico da exigência impossível de ser executada em sua totalidade. O mais sensato seria pensar na angústia como correspondente do fracasso, e não do sucesso mas, em função do fuzilamento de cobrança, ela assume a cena.

  O sucesso não pode ser pensado desarticulado da falha, da falta. Esta voz chama-se supereu na teoria freudiana e nos bombardeia com exigências inesgotáveis a fim de rir desavergonhadamente de nossos fracassos. Trata-se de um comando interno antiético, inimigo do homem e, em última instância, o grande responsável pelas guerras e atrocidades que acontecem mundo afora.

Portanto, não há sucesso irretocável aos moldes do que esta voz cruel da consciência exige e, caso houvesse, ­ — ele cobraria o preço da morte do desejo; —  isto é, desse sopro de vida que nos movimenta no mundo.

A crueldade e o sadismo característicos dessa exigência de que deve-se dar conta de um impossível não autoriza o descanso bem como a inscrição de uma satisfação “mais ou menos”, — incompleta, — aquém do gozo ideal daquele que o sujeito supõe gozar mais, ser mais feliz.

O sucesso deve manter-se apenas no nível do sonho e da projeção, em razão do sentimento de culpa e inferioridade que impedem a fruição da felicidade correspondente ao êxito.

 

Destaco a fala de uma mulher que, ao chegar ao topo do trabalho, há muito lutado e desejado, acreditando-se indigna do sucesso e não conseguindo suportar a felicidade, criou mecanismos para se autossabotar e consequentemente ser mandada embora. Ao perguntá-la sobre o porquê desse boicote, disse-me que a sensação de ser bem-sucedida a despersonalizava, causando um estranhamento impossível de ser suportado pois, dessa forma, ela se afastava do vínculo afetivo conservado com os pais — muito pobres.

Fica a questão sobre como cada um lida com o sucesso e, de modo geral, o quanto o sentimento de insuficiência resultante da exigência de sucesso pleno, sem falhas, assim como o peso da culpa, podem contribuir para o fracasso e para o não aproveitamento das benesses que o sucesso pode causar.

Imagem de capa: Reprodução

Rodrigo de Souza

Psicólogo, Psicanalista, Pós-graduado em Psicologia Hospitalar pela PUC-SP e Membro Pesquisador do Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição (Lab-PSI) do IP-USP. Contato pelo e-mail: rotorisse@hotmail.com

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