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Precisamos falar sobre a loucura

Precisamos falar de loucura, não no seu sentido metafórico, mas em seu sentido literal – não se trata da escolha de um indivíduo por comportamentos fora do padrão, mas de uma condição involuntária quanto a qual não há possibilidade de escolher. Essa loucura é a que formalmente chamamos psicose, ou psicoses, considerando que são muitas. Elementos dessas psicoses fazem parte do vocabulário cotidiano sem que a maioria das pessoas tenham consciência de onde tais palavras vêm e o que realmente querem dizer: esquizofrenia, paranoia, melancolia, megalomania…

Não pretendo dar aqui nenhum curso sobre nomenclaturas, muito, ao contrário, pretendo mesmo é desconstruí-las. É que tenho observado com muito incomodo o quanto as pessoas, de um modo geral, morrem de medo da loucura – das pessoas chamadas loucas. São muitos os equívocos que acompanham esse medo que vem principalmente da falta de conhecimento do que a loucura realmente é. Que primeiro se esclareça que uma pessoa com psicose não é psicopata e são duas coisas absolutamente distintas – Dexter não é psicótico, é psicopata, entendeu? Nem mesmo existe um “padrão” para a loucura (não é atoa que dizem que cada louco tem a sua mania…), mas é possível afirmar que não há nada na natureza da loucura que esteja associado à maldade e  violência que a ela atribuem, mais do que em qualquer outra natureza considerada normal.

Há ainda a falsa crença de que o louco está o tempo inteiro e irremediavelmente fora do mundo, de modo que não existe um diálogo possível, de que nunca há intenção em suas ações, de que ele é absolutamente ingênuo. Ouvi, certa vez, que uma pessoa com esquizofrenia, por exemplo, nunca poderia ser considerada artista, pois não estava consciente da execução da sua obra. Chamaria de “um erro comum de interpretação” se, na realidade, não fosse um preconceito corriqueiro e nocivo que o louco carrega consigo nas costas diante das mais diversas situações da sua vida. Pior que isso é ver pessoas que conversam com um psicótico como se ele fosse uma criança de 2 anos de idade. Cabe aqui outra distinção: uma pessoa de estrutura mental psicótica não tem deficiência mental, a inteligência dela e o seu desenvolvimento cognitivo como um todo podem ser iguais ou até superiores ao de uma pessoa considerada normal, por que trata-se de uma pessoa fisiologicamente saudável – e se não o for, não será devido a psicose, embora o contrário seja possível.

O que acontece é que da mesma forma que um tanto de “gente normal”, os chamados neuróticos, podem vir a ter sintomas depressivos que os visitem de tempos em tempos, ou a síndrome do pânico, a ansiedade e outros sintomas que dizem respeito ao seu caos interior, assim também acontece com o psicótico, mas os seus sintomas são outros: alucinações, paranoia, etc. E se cada um carrega o seu fardo de uma forma diferente, assim também existe a diferença na diferença – as alucinações não são iguais, as formas de uma pessoa em surto se manifestar também não são iguais, assim como as tristezas não são iguais, nem as manifestações de alegria. Não podemos apagar a singularidade das pessoas em detrimento de sua estrutura mental ou da doença que advém dela. E todas as estruturas mentais podem vir a adoecer, particularmente em um mundo tão tóxico e imunologicamente frágil.

É perfeitamente possível conviver e conversar com um louco quando ele não está em surto. Pode ser que ele veja o mundo de uma forma diferente da sua e se comunique de forma, também, diferente, pode ser que ele tenha alguma dificuldade em se localizar no tempo e no espaço da mesma forma em que você se localiza, mas é fato que a grande maioria dos ditos loucos dariam conta disso se os demais estivessem dispostos a se empenhar nessa comunicação. Quando uma pessoa está assistindo um filme de fantasia, por exemplo, ela conversa com personagens, consegue raciocinar dentro de uma lógica que é fictícia e se imaginar nela, decora nomes de objetos e ações que só existem naquele universo fantasioso, e nada disso parece absurdo. Da mesma forma acontece nos jogos, na apreciação artística, na paixão… Recebemos a linguagem que estamos abertos a receber e, assim, nos comunicamos. Há aqueles que conseguem se comunicar até mesmo com animais. Por que parece tão mais inviável, então, comunicar-se com uma pessoa psicótica?

São pessoas capazes sim, conscientes sempre que estão saudáveis, isto é, quando não estão em surto. Podem perfeitamente encontrar formas de organização – que apenas não condizem com as formas de organização mais convencionais. Podem viver normalmente, podem se comunicar se alguém puder ouvir, podem estabelecer laços e compromissos à sua maneira, podem ser felizes. Podem tudo isso e podem mais. São raros os casos em que estas capacidades estão realmente comprometidas de forma crônica. O que cronifica a loucura enquanto uma condição de dependência e incapacidade, o que a isola e marginaliza enquanto ativa e participante do cotidiano é a forma em que a sociedade a trata. Há e houveram lugares que consideravam os seus loucos seres superiores e capazes de se comunicar com os deuses, e há outros onde essas pessoas são aceitas socialmente e todos conversam com elas com a mesma atenção e respeito com que conversam com qualquer outra pessoa. A loucura não é marginal por si mesma, ela é marginalizada por uma estrutura social que, neste caso, esta sim é perigosa, diria, até, perversa.

Freud mesmo indicou a falência da nossa civilização em atender às condições essenciais do ser humano em sua diversidade subjetiva em “O mal estar na civilização”, com humor sagaz Erasmo “desenha” para os leigos porque a loucura é mais uma questão de fora para dentro do que de dentro para fora. Nós mesmos adoramos falar de loucura, adoramos falar que somos loucos, adoramos falar que gostamos de pessoas loucas quando isso diz respeito a uma fugidinha dos padrões. Esse gosto descompromissado com a diferença só precisa estender-se um pouco mais e ser protagonista, para dar conta de bater um papo com um esquizofrênico, tentar entender suas alucinações e como ele vive todas aquelas coisas em lugar de simplesmente duvidar e desprezar. Muitas das características “perigosas” que os loucos apresentam no imaginário social são resultado da marginalidade que lhe é atribuída. Que pessoa que nunca recebe amor, gentileza e atenção das outras, que nunca é levada a sério ou em consideração, comporta-se de forma agradável e madura diante do outro? Que pessoa que, sendo a todo instante tratada enquanto incapaz, se perceberá capaz em algum momento? Que pessoa que nunca é ouvida aprenderá a se comunicar?

Precisamos ser menos ingênuos em relação à nossa visão da loucura. Há muito a se aprender com os loucos, todos eles, os loucos loucos e os loucos normais. Não deveríamos nem romantizar a loucura, nem subestimá-la ou desprezá-la. O louco pode ser bom ou mal, criativo ou medíocre, carismático ou apático, como qualquer pessoa pode ser uma e outra e tantas outras coisas ao mesmo tempo. O louco não é “O louco”, ele tem a loucura enquanto uma condição para existir, e isso pode ser limitação e potência – muito depende das possibilidades que o meio oferece. Há muita riqueza de história e de vivência que perdemos na recusa da escuta ou de uma escuta passiva da pessoa considerada louca. Esse medo de conhecer algo em vez de simplesmente acatar o que foi previamente estabelecido sobre o mesmo é uma debilidade que custa caro, tanto para quem a cultiva quanto para quem é alvo dela. A loucura não morde, mas a ignorância, o preconceito e a solidão que estes impõem à pessoa psicótica sim. Mordem muito. Mordem tanto que podem até matar.

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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