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Precisamos todos sair do armário.

Porque há muito além da sexualidade que precisamos assumir.

Há alguns imperativos perigosos por aí, disfarçados de liberdade, mas ressonando discursos tão semelhantes aos que criticam. Qualquer um que da vida já tenha experimentado os caldos, dos mais saborosos aos mais amargos, sabe que liberdade mesmo, libertar-se, é não seguir nenhum padrão que não tenha origem na vontade própria, e dar conta disso sem atropelar vontade alheia, ainda que tais padrões tenham sido pintados pelos romances revolucionários.

Ser livre é andar na corda bamba – há de se conhecer o peso do próprio corpo, o peso de ser si mesmo. Não há liberdade alguma em fazer coisas consideradas subversivas simplesmente porque assim o disseram. Ser subversivo é agir com autenticidade, e isso sempre traz críticas, tanto da parte dos considerados conservadores quanto da parte dos que se consideram liberais.

Percebo com certo asco alguns discursos que certa vez foram inovadores, mas que agora não passam de repetição sem sentido. Não há, talvez, melhor exemplo para isso do que o posicionamento das pessoas em relação à sexualidade. Não consigo pensar em algo mais íntimo e natural de ser escolhido conforme as inclinações próprias de cada indivíduo do que a vida sexual de uma pessoa, desde que, é claro, ela não prejudique a escolha nenhum outro, inclusive daqueles que não estão aptos a fazer escolha alguma. Liberdade é uma atividade de exploração continua de território conhecidos e desconhecidos, de procurar espaços onde ela possa ser vivida com semelhantes, com afins. Não é nada parecido com o que se impõe com violência, seja esta física ou moral – a isto conheço como tirania.

E o que há de tirania tentando se passar por ideal libertador! Se, por um lado, temos uma explícita a aversão à experiência sexual livre de moralismos, fielmente representada pelos fanatismos religiosos, pelos posicionamentos hostis que tentam atribuir à opinião coletiva algo é que intrinsecamente individual, há, por outro lado, um oposto irônico e tão hipócrita quanto o primeiro – os que tentam impor uma fórmula de sexualidade livre conforme a vontade do interlocutor.

Mascaradamente investidos em saciar os desejos próprios, imaturos de mais para lidar com a recusa alheia em seguir a sua linha de anseios, criticam aqueles que, por alguma razão que só diz respeito aos próprios, não desejam viver certas experiências, ainda que se considerem e sejam pessoas livres de fato – fazem o que querem fazer, aceitam os convites que desejam aceitar, transam sim – quando querem, com quem querem, como querem, quando assim é possível.

Mas há uma certa imposição completamente distorcida, de que para que uma pessoa seja considerada livre e interessante, ela precisa viver o inverso da caduquice pseudocelibatária monogâmica conservadora. Ela ou ele precisam “comer” ou “dar” para quem que assim os queiram. Não, ninguém precisa. E isso não faz de ninguém absolutamente mais nada do que alguém que gere a si mesmo. Ninguém precisa beijar todas as bocas para ser livre, nem transar com ninguém só para não perder a oportunidade, nem tirar a roupa quando não se sente à vontade, nem participar de orgias, nem, muito menos, quem o faz porque assim convém ao seu desejo, deveria ser julgado réu por isso.

Se cada um desse conta e aceitasse que o outro – adulto, também dá conta de lidar com a própria libido, com o próprio corpo, com a própria genitália, é possível que, no que diz respeito aos interesses realmente coletivos, porque pela natureza assim o são – o dinheiro público, por exemplo -, as pessoas estivessem mais ligadas, mais racionais e esclarecidas quanto aos verdadeiros interesses e destinos do que afeta a todos e não a um ou dois ou meia dúzia.

O mesmo serve para as experiências místicas ou toxicas, para os gostos musicais, para os lugares frequentados, para as aventuras. Podemos dizer do que pensamos da vida, podemos sugerir alternativas, podemos fazer convites, podemos desejar, e, a quem arrisca, pode-se até dar conselho. O que não faz sentido é tentar impor a própria opção de vida para ninguém, quem quer que seja. É isso o que em primeiro lugar define o que é “separar as coisas”. Separar o que é meu do que é nosso. Deixar que as pessoas enlouqueçam no tempo delas.

É certo que ninguém é obrigado, também, a ser amigo de ninguém. Mas, vamos ser honestos, essa coisa de dizer que “tudo bem, quero só ser seu amigo”, mas que vira a cara quando o sexo é colocado em questão como algo que não será consumado nessa relação amistosa, é fruto da mesma hipocrisia de quem vira a cara para o outro por ter uma vida sexual considerada “libertina”. Virar a cara para alguém porque não topa experimentar a sua viagem, é da mesma natureza de quem vira a cara para uma pessoa porque é viajante em terras moralmente subjugadas. E por aí vai.

Esses são apenas os exemplos mais corriqueiros. Dessa mesma natureza de atitudes, há quem atire pedras em alguém que tem comportamentos e ideais semelhantes ao seu, mas que por ventura lhe atinge, como quando a “amiga” acaba atraída pelo mesmo objeto de afeto, ou pior, lhe atrai a atenção – é quando, para fins de ilustração, a garota revolucionária que pega geral vira a puta que pegou o “boy” da outra (sem que nesta quadrilha algum compromisso consumado entrasse na roda).

Cair na real: há muito mais de uma forma de desprezar a diferença.

Falar de hipocrisia virou regra, e só por isso já se torna um discurso hipócrita. É que para não ser hipócrita é preciso refletir um pouco a mais que o normal sobre os próprios posicionamentos. É preciso empatia o suficiente para se imaginar no lugar do outro. É preciso trabalhar sobre si, para se dar conta de que aquilo que defendemos, para o bem ou para o mal, não é apenas uma ideia abstrata, mas uma condição que a qualquer momento pode nos tocar. Deveríamos ser um pouco mais honestos nos nossos discursos. Está interessado em quê? Saber o que quer pode ser mais difícil do que parece. Que possamos dispor do “não sei” e viver a vida sem nos esconder por trás de palavras apaixonadas, mas falsas.

Precisamos sair do armário para viver nossas vilezas e virtudes assumidamente – sem excessos de modéstia ou condescendência. Para assumir que às vezes somos superficiais e interesseiros. Para assumir a nossa humanidade, que sempre será falha, e nos perdoarmos por, de tempos em tempos, sermos contraditórios e decepcionarmos a nós mesmos – e aos outros. Precisamos sair do armário para não cair no discurso de libertação que tenta impor comportamentos. Sair do armário é ser e deixar ser, cada qual no seu tempo, cada qual do seu jeito, e só.

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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