Profissionais de ajuda e as dores que carregam no jaleco

Quando olhas para o humano que há por trás do jaleco do profissional da saúde o que vês? És capaz de enxergar nele o potencial para a cura? Percebes sua capacidade de empatia? Consegues detectar seu grau de conhecimento? Assim… só de olhar para ele… quantas coisas passam pela sua mente? Quantas crenças? Quantos julgamentos? Mas, será que quando olhas bem a fundo e bem de perto és capaz de enxergar suas dores, que muitas vezes nem mesmo ele sabe que carrega no jaleco?

Antes de dedicar-me apenas a Psicologia Clínica no consultório me especializei e trabalhei na área hospitalar. Por onde passei conheci pessoas espetaculares, de uma humanindade à flor da pele, de conhecimento e dedicação profunda a tudo o que faziam. Mas, também conheci outros profissionais que um tanto me intrigavam. Estes pareciam indiferentes a qualquer tipo de sentimento alheio e, por vezes, até aos seus próprios. Permaneciam automatizados em suas funções, encapsulados nas couraças de seus papéis de especialistas. Alguns tinham técnica aperfeiçoada, mas faltavam-lhes a destreza para perceber os detalhes, detectar sinais e responder empaticamente às relações com pacientes, familiares e equipe. Outros tratavam todos do mesmo jeito, convertiam pacientes em números, leitos, enfemidades e partes do corpo. Pareciam insensíveis a dor e ao desespero.

Esse último grupo me chamou tanto a atenção que me propus a investigar o que realmente acontecia. O que poderia haver por trás do que se manifestava na forma de sintomas e comportamentos tão opostos ao que se espera de uma pessoa que se dispõe a cuidar do outro?

Para desvendar esse mistério precisei ir para além dos rótulos com os quais muitos de nós também acabamos etiquetando esses profissionais. Não podia considerá-los de antemão culpados, más pessoas, irresponsáveis, frios, insensíveis e charlatões. Carecia compreender do que falavam seus sintomas, assim como a febre nos avisa da infecção.

Foi então que encontrei na descrição dos sintomas da Síndrome de Burnout muitos dos comportamentos que relatei anteriormente. Além da exaustão emocional e da baixa satisfação e envolvimento com o trabalho, uma característica do quadro é a Despersonalização. Esta é marcada pelo desenvolvimento de uma insensibilidade emocional, sendo que o profissional passa a tratar seus clientes e colegas de trabalho como objetos e de forma fria, impessoal e massificada. Há uma intensa negação da subjetividade (do outro e si próprio) e uma diminuição dos contatos pessoais para evitar a angústia.

Veja também o artigo: Síndrome de Burnout: E quando o profissional adoece?

Tired Hospital Worker — Image by © 68/Ben Edwards/Ocean/Corbis

Mas, o que leva um profissional de ajuda a desenvolver um quadro assim? E porque tantas pessoas desenvolvem os mesmos sintomas e passam pelo mesmo processo?

Existem diversos fatores desencadeantes, que vão da qualidade do ensino e formação do profissional até as caracteristicas do local em que trabalha. Mas, parece que uma delas é essencial: a falta de tempo e preparo que os profissionais da saúde possuem para cuidar da carga emocional inerente às relações interpessoais que desenvolvem com pacientes, familiares e equipe.

Saímos da faculdade imbuídos de uma grande expectativa de ajudar as pessoas e colocar em prática todos os conhecimentos adquiridos durante a formação. Porém, poucos de nós saímos prontos para lidar com os aspectos subjetivos do cuidado e de como eles nos afetarão ao longo dos anos. Desejamos curar, reabilitar, salvar vidas, testemunhar finais felizes. E, com isso, não nos desenvolvemos para lidar com os sentimentos que aflorarão diante dos erros profissionais, das perdas, dos lutos e dos fracassos. E, muitas vezes, também não nos preparamos nem mesmo para o nosso próprio adoecer e para estarmos no lugar de paciente.

As pesquisas mostram que a população mais afetada pela Síndrome de Burnout é justamente a com menos tempo de formação e com idade até 30 anos. Neste período ainda estamos envoltos na idealização profissional, não sabemos reconhecer os próprios limites, temos muitas inseguranças e nos faltam recursos internos para o enfrentamento das inúmeras situações de crises que iremos presenciar.

Mas, a relação profissional-paciente não espera que estejamos 100% prontos para nos chamar para a ação. Somos encarregados do cuidado de outros seres humanos fragilizados e de alguma maneira vamos criando defesas para lidar com o custo emocional que envolve cada caso.

E, à cada situação de crise vamos lidando com a dor através das ferramentas que se encontram disponíveis no momento: negamos, nos distanciamos, deslocamos para outros relacionamentos, agimos agressivamente no trânsito, excedemos na bebida, extravasamos na vida, nos congelamos emocionalmente para evitar mais angústia e assim por diante. Mas, em algum momento, a corda que permanece em pura tensão arrebenta e, as dores que estavam camufladas no jaleco transbordam e nossa vulnerabilidade se torna aparente.

Neste momento não há mais o que negar! Estamos adoecidos! Será preciso mudar a postura, se colocar do outro lado da cena, no lugar de paciente e buscar um caminho para a própria cura.

Mas, será possível evitar tal desfecho? Há outro modo de lidar com toda essa dinâmica que parece tão cristalizada em nossa sociedade, em que a dor não tem espaço para elaboração em qualquer canto e muito menos para àqueles que são chamados cuidadores?

Como Psicoterapeuta de abordagem Junguiana gosto de recorrer aos mitos para ver como eles podem nos ajudar a entender simbolicamente as questões da vida. E neste caso há um que nos é capaz de auxiliar a refletir sobre a questão. Trata-se do Mito do Curador-Ferido:

Fruto da união de Apolo com Corônis, Esculápio foi abandonado no monte Títion logo após seu nascimento, onde foi amamentado por cabras e protegido por um cão. Ali foi encontrado por um pastor de cabras e, neste momento, é profetizado que o menino encontraria a cura para todas as doenças e ressuscitaria os mortos. Em outra versão, a mãe de Esculápio comete adultério e é descoberta por Apolo que a mata. Arrependido, Apolo faz uma incisão cesárea em Corônis fazendo nascer Esculápio. Depois disso, o menino é entregue a Chíron ou Quíron para ser educado.

Sob a tutela de Quíron, Esculápio se familiarizou com as plantas e seus poderes curativos, tornando-se um grande curador, chegando ao ponto de conseguir ressuscitar pessoas. Tal fato irritou o deus do mundo dos mortos, Hades, uma vez que as pessoas não morriam e não iam para o seu mundo. Assim, Hades solicitou uma atitude de Zeus, que acabou punindo Esculápio, matando-o fulminado com um raio.

A história de Esculápio traz à tona a questão do poder e da inflação na prática terapêutica. Detentor de um conhecimento específico (ressuscitar os mortos), Esculápio deixa de respeitar as próprias leis da vida, o que acaba despertando a ira dos deuses e causando sua morte.

Muitas vezes, os profissionais da saúde acabam agindo assim. Mobilizados por suas expectativas, por sentimentos de onipotência e auto exigência, e alimentados racionalmente pelo arcabouço de conhecimentos adquiridos, esquecem-se de respeitar aspectos vitais e, por vezes, a própria realidade. Podemos encontrar essa atitude, por exemplo, nos casos de obstinação terapêutica, distanasia, abusos de poder, etc., muitos discutidos nas práticas de saúde atualmente.

No lado positivo do mito de Esculápio, temos a forma como se davam as curas. Nestes casos, a pessoa doente era levada a um templo, o “àbaton” onde ficava aguardando ter um sonho de cura, em que o próprio deus aparecia e intervinha tocando no local doente ou informando como a pessoa deveria proceder para que a cura ocorresse. Muitas vezes, o deus era manifestado por uma serpente, símbolo da capacidade de renovação dado a possibilidade da mesma de trocar sua pele, o que significaria liberta-se da doença e dar lugar a um novo indivíduo. Assim, a cura não ocorria pela intervenção de um médico humano, mas de um médico divino e interior que se manifestava por meio de mecanismos vindos do inconsciente e simbolizados pelo doente no momento em que este se encontrava incubado no templo.

Neste caso, podemos pensar que o paciente tem um papel ativo e importante no seu processo de cura e que precisa compreender qual as mudanças que precisa realizar em sua vida para restabelecer sua saúde. É o que na prática chamamos de processo de conscientização e adesão ao tratamento.

Representando outro aspecto do processo curativo, Quíron era um centauro conhecido por dominar a arte da cura. Um deus grego que combina um aspecto animal e um aspecto humano, trazendo consigo o lado instintivo e o lado racional. Metade homem, metade cavalo, Quíron era portador de uma ferida incurável, provocada por uma flecha envenenada recebida acidentalmente de Hércules. Assim, o deus que promove a cura é também o portador do sofrimento e da doença eterna.

A figura mítica de Quíron nos ensina que aquele que é capaz de promover a cura é também o detentor de uma ferida que é eternamente presente. Isto é, todo curador é também um ferido! E tal observação serve-nos de base para restaurarmos nossa humanidade enquanto cuidadores.

Cada encontro, cada luto, cada perda, cada frustração… desperta no profissional de ajuda sentimentos que precisam encontrar espaço para a elaboração. Estar atento à presença de suas próprias mazelas, sofrimentos e dores é que faz com que o profissional da saúde se conscientize de que cada encontro com os pacientes que cuida lhe toca na alma e o mobiliza emocionalmente.

E assim, ele pode restaurar a empatia que é tão essencial numa relação de cuidado. Desfazer-se das couraças e proteções que criou para se proteger não só da dor do outro, mas das suas próprias chagas. Este é o grande trabalho a se realizar. Pois, aprendendo o caminho para a própria cura e cuidado, o profissional da saúde se torna muito mais apto para compreender, avaliar e auxiliar àqueles que cuida no seu próprio processo de transformação.

Cabe à nossa sociedade cuidar também de quem cuida! Humanizar suas feridas e reconhecer seus sintomas como um quadro que merece tanta atenção quanto o de qualquer outro paciente. Colocar os julgamentos de lado e olhar para o profissional que se encontra dentro do jaleco e para suas histórias, suas dores e necessidades de ajuda e de atenção. Reconhecer que todas as pontas da unidade de cuidado (paciente, família e equipe) são essenciais para que se trilhe o caminho de saúde e bem-estar que tanto almejamos quando nos vemos em uma situação de fragilidade. As mudanças precisam começar no ensino e na formação, mas precisam continuar fora dos muros das universidades e dos hospitais, ou seja, dentro de nossas próprias casas e corações.

Marcela Bianco

Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana formada pela UFSCar. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Sedes Sapientiae e em Gerontologia pelo HSPE. CRP: 06/77338

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