Não foi uma ou duas vezes na vida que eu ouvi de algum homem leigo, ou apenas razoavelmente instruído acerca da psicanálise, alguma ofensa mascarada de “diagnóstico analítico”. Popularizada em demasia, creio que as boas intensões freudianas não se realizaram. Como tudo o mais que por demais se populariza e acaba por banalizar-se, devido à falta de conhecimento e aos usos escusos, uma ciência que poderia auxiliar a muitos perde o seu valor.

Nunca vi, por si só, mal algum nessa teoria. Embora psicanálise e psicologia não sejam a mesma coisa, ao contrário do que muitos pensam, foi ela que me levou ao curso de psicologia, e dela desfrutei ao máximo, e ainda é o que vejo como o mais sólido para a orientação clínica, particularmente no caso das psicoses. Todavia, como foi com a bomba atômica e com tantas outras descobertas geniais, o uso predominante que se faz das coisas acaba por travesti-las em sua finalidade e epistemologia, o que, consequentemente, acaba por desacreditá-las.

Não é incomum que escute de outras pessoas, que relatam seus sofrimentos nos lugares mais inusitados, ao sugerir uma terapia ou um processo analítico, uma expressão acompanhada de pavor. São inúmeros os relatos de trabalhos realizados por maus profissionais, imagino que despreparados ou com formação duvidosa, que se utilizam de termos aleatoriamente para impressionar seus “pacientes”, emitem atitudes antiéticas ou simplesmente tentam embromar e acham que está tudo bem. Esquecem-se, talvez, que uma pessoa que sofre emocionalmente, não por isso se torna burra. O pior é que, como nem todo psicanalista precisa ter formação em psicologia, ou psiquiatria (o que penso que seria sensato), muitos não estão submetidos a um conselho ou código de ética.

Fora isso, temos os psicanalistas de boteco ou de esquina, mais charlatães do que certos jogadores de búzios, tarô, pôquer, ou outra jogatina qualquer. Não estou desmerecendo nenhum desses profissionais, nem místicos, nem jogadores, nem psicanalistas sérios. Todavia, é fato que estes se tornam cada vez mais raros, e a profusão dos verbetes dessa ciência que era subversiva em sua época, transforma-se hoje em bala na agulha de rótulo ofensivo para quem quer que, por desonestidade intelectual ou simples desinformação, dispõe deles para diminuir, com uma falsa autoridade, aquele que pretende atingir.

Uma das razões para que isso afete mais às mulheres é devido à própria origem da ciência psicanalítica, que tem seus fundamentos no estudo das histerias. A doença misteriosa que afetava as mulheres da época, possuindo como sintoma conversões físicas, paralizações, perda de conhecimentos essenciais (como esquecer a língua materna), dentre outras manifestações “bizarras”, não raro é utilizada erroneamente para ofender uma mulher quando a mesma apresenta uma atitude que não esteja dentro do esperado pelos padrões. Um desvio de interpretação, intencional ou não, daqueles que podem transformar um “pai nosso” em “pau no osso”. Isso apesar de Freud e tantos outros que, ao contrário do que pareça a alguns, dirigiam sua crítica muito mais aos padrões sociais e aos males que esse causava (como é explícito em “Mal-estar na civilização”) do que aos indivíduos e suas “anomalias”.

É no mínimo curioso de se observar, que caso um homem perca a razão, se altere, grite, ou aja por impulso, ele apenas “perdeu a cabeça”, estava nervoso, no máximo, é “temperamental”. Mesmo que o comportamento abusivo chegue a uma agressão física, tantas vezes é perdoado sem diagnósticos prévios. “É assim mesmo…”. No caso de uma mesma atitude oriunda de uma figura feminina, bom, aí a coisa fica séria: é doença, é histeria, está desiquilibrada, sofre de TPM, é depressiva, melancólica, precisa de tratamento. É penoso! Penoso ter que ouvir relatos e mesmo sentir na pele o uso de um conhecimento tão rico sendo utilizado de forma tão porca. Não apenas no caso das mulheres, mas para denigrir e marginalizar qualquer comportamento que não seja condizente com a concepção de normalidade do oponente.

Infelizmente nem todos os que sofrerem esse tipo de agressão – que ao meu ver é mais grave do que ser chamado honestamente de “filho da p…”, ou qualquer outro palavrão, que para os fins mesmo de ofender é destinado; possuem conhecimento suficiente para recusar esse rótulo e tratar com o devido respeito o seu ofensor: mandando ele à merda, ou mesmo, ir estudar psicanálise (de verdade), ou fazer análise de fato. E no caso dos psicanalistas formados, mas que usam do seu conhecimento para propósitos vis, pedir ao menos que respeitem a teoria tal qual ela merece, pagá-los com uma moeda qualquer (proporcional à qualidade do diagnóstico não requerido) ou encurrala-los a partir de suas próprias ferramentas. Ignorá-los, senão, é o que vejo como a melhor opção. Não há nada pior para um espírito vaidoso, mas de pouco mérito fático, que ser tratado como um pedaço de graveto no meio de uma trilha, que de tão pouca valia, incomoda um pouco, mas não gasta nem mesmo retirá-lo do caminho.

Lamentável que esse tipo de uso mesquinho da psicanálise afaste tantos, não apenas do tratamento analítico, que ao contrário de incutir rótulos, pode proporcionar a tantos um conhecimento maior de si, mas também acaba por afastá-los de qualquer outro tipo de terapia, já que em uma sociedade onde a subjetividade e as emoções são tratadas como de segunda importância, a ignorância sobre o ser humano enquanto mais que uma máquina producente de munição para um sistema vampiresco, se torna predominante, massiva e autodestrutiva.

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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