“Você deseja saber quem é Myrna. E fará a si mesma perguntas como estas: “É loira? Morena? Nasceu no Cairo? Em Alexandria? Adivinha o futuro? É velha ou moça? Respondo: Myrna sou eu. Dê seu primeiro nome e o primeiro nome de seu namorado, noivo ou marido. A data de nascimento de ambos. E conte seu romance. Eu lhe direi a verdade, só a verdade, presente e futura. E se quiser saber quem é Myrna responderei: – Apenas uma mulher”.
Em meados da década de 40 Nelson Rodrigues era um dos autores nacionais mais comentados quando o assunto era teatro. A peça escrita por ele Vestido de Noiva era um estrondoso sucesso, contudo o escritor tinha sucesso, mas não dinheiro.
Nessa época muitos jornais passaram a publicar estórias sentimentais que visavam aumentar as vendas e consequentemente os lucros. Tornaram-se populares então os ditos folhetins.
Convidado para trabalhar nos Diários Associados de Assis Chateaubriand, Nelson Rodrigues convenceu o diretor do jornal que poderia escrever muito bem esse tal folhetim. Para publicar, no entanto, Nelson escolheu o pseudônimo de Suzana Flag. Sim, Nelson encarnou uma mulher para escrever e fez dela famosíssima. Todos amavam ler as estórias de Suzana, a ponto de o escritor lançar livros como se tivessem sido escritos por ela, inclusive uma autobiografia de Suzana intitulada Minha Vida.
Envolta em uma aura de mistério a famosa escritora fantasma foi amada e idolatrada, contudo Nelson se cansou dela e foi escrever para o Diários da Noite, criando nesse jornal um outro pseudônimo feminino, o de Myrna, uma conselheira sentimental.
E foi nesse ponto que conheci Nelson transvestido de mulher, quando, atualmente, um conhecido, de forma despretensiosa, citou-me uma das frases largamente difundidas nos conselhos sentimentais de Myrna: “Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo”.
Nelson escreveu estórias bastante fantasiosas, sempre prendendo a atenção dos leitores e com a coluna de Myrna não foi diferente.
Curiosa, fui atrás para saber mais sobre Myrna e lendo um livro coletânea “dela” que tem como título a frase emblemática “Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo”, não me foi difícil perceber que Nelson guardava em seus conselhos um conservadorismo típico de seu tempo. Muitos conselhos de Myrna giravam em torno da importância das mulheres fazerem os maridos felizes, contudo, muito diferente do que vemos hoje, os conselhos dela eram bastante emblemáticos, quase pontuais. Tinham uma ousadia latente, conferida, provavelmente, pelo fato dessa mulher ser um pseudônimo.
Para explicar a afirmação acerca de amor e felicidade Myrna comenta: “Você sabe qual é o tremendo erro da maioria absoluta das mulheres? Ei-lo – achar que o fato de amar implica, obrigatoriamente, a felicidade. Quem ama pensa que vai ser felicíssimo e estranha qualquer espécie de sofrimento. É exato que os amores têm seus êxtases, deslumbramentos, momentos perfeitos, musicais etc., etc., mas eu disse momentos e não 24 horas de cada dia“…
Sobre a dúvida de uma leitora sobre se casar com um homem sem posses: “Imaginem se todos nós fôssemos, em amor, bastante lúcidos. Então pensaríamos minuciosamente em tudo, no preço do feijão, do arroz, no custo de vida cada vez mais elevado, no colégio das crianças“. Depois lembra-se de uma conhecida que não queria filhos para não pegarem coqueluche e complementa, “Mas não é com estes raciocínios que se faz vida, que se perpetua a espécie humana! Daí porque na hora do amor precisamos ser um pouco irresponsáveis“.
Respondendo para a mulher que ama o marido na ausência, mas em sua presença se desencanta: “Se a presença do meu amado não me empolga, nem nada, apelo para sua ausência. Sob sua presença, eu o vejo como ele é, na realidade. Na ausência tudo muda. Vejo-o não como ele é, mas como eu quero! (…) “Deve ver o menos possível o seu namorado. É a única solução para o seu caso“.
Sobre as exigências de uma leitora ao marido: (…) “em amor, ninguém tem direito de exigir nada. O único direito que se tem é o de aceitar aquilo que a outra pessoa dá de todo coração e com um máximo de espontaneidade“…
Sobre a leitora que diz gostar de um homem feio: “Bonito é o homem de quem a gente gosta“.
Para a leitora que teme não gostar mais do marido: “Acredite, Elvira. O amor é eterno. Só acaba quando não era amor“.
Para a leitora que não se sente amada: “Ah! Minha filha! Se os homens só namorassem a criatura amada, só namorassem em caso de amor, haveria no mundo uma meia dúzia de namorados“.
Para uma leitora que teme a solidão após os trinta anos: “Concebo o inferno como uma sala, confortável, tranquila e moderna, e, dentro dela, sentados, um homem e uma mulher, que não se gostam, e estão condenados a viver, perpetuamente, juntos“.
Para a leitora cujo noivo sente ciúmes de sua excessiva atenção a uma ave, a qual beija na boca: “Aceite meu conselho: deixe o pintainho no galinheiro; e quando ele se transformar em galinha, faça uma boa canja e ofereça ao seu noivo, em uma tocante e simbólica homenagem (…) este ato quererá dizer que jamais deixará que, entre vocês dois, se interponha qualquer espécie de pinto“.
A coluna de Myrna se tornou um sucesso em oito meses, fazendo com que a escritora publicasse um romance em folhetim intitulado A mulher que amou demais, que foi outro grande sucesso.
Nesse ponto podemos afirmar que os pseudônimos de Nelson se tornaram heterônimos, pois passaram a ter vida quase própria, a ponto de ofuscarem um pouco o brilho do próprio criador em certos períodos.
Em 1954 no jornal A Última Hora Nelson ressuscitou Suzana Flag que passou a fazer consultas sentimentais, assim como Myrna. Nesse ponto as duas foram quase idênticas em suas citações.
No fim das contas era Nelson a escrever as colunas sentimentais, a se deixar tocar pelas histórias das cartas e a usá-las como matéria prima para sua escrita.
Nelson Rodrigues foi Nelson Rodrigues, mesmo quando decidiu ser mulher. E para a paz das pessoas que lhe consultaram, ele nunca admitiu ser ele por trás de Suzana e de Myrna.
Felizmente, pois imaginem que espantoso seria saber que não eram mulheres duas figuras que se fizeram afirmando, antes de mais nada, serem mulheres e verdadeiras?
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