Gosto de grifar frases em livros. Enquanto leio “Patrimônio”, de Philip Roth_ um dos escritores que mais admiro_ na página 29 encontra-se marcada a frase: “Mas, na verdade, os entrelaçamentos mais íntimos entre uma mãe e um pai, as dificuldades, frustrações e tensões duradouras, permanecem para sempre um mistério, sobretudo, talvez, se a gente cresce como um bom menino num lar seguro e bem organizado.”

O livro chegou em boa hora. Cheio de emoção e comovente verdade, o autor aborda a história (real) dos últimos dias de seu pai, enquanto recorda sua mãe e o amor dos pais _ uma relação nem sempre fácil, mas que de forma indireta conduz a narrativa dos filhos.

O amor nos torna vulneráveis. E sentimos isso desde muito cedo, naquela sensação incômoda que as crianças têm quando descobrem que pai e mãe não são eternos. Daquele instante em diante, tudo muda. Ficamos vulneráveis ao afeto que recebemos e oferecemos; ao encantamento que vem e vai; à incerteza de querer e ser querido.

Nos tornamos vulneráveis à relação de amor que nossos pais construíram entre si também. Porque é esse amor, o primeiro que vivenciamos _ como espectadores_ que nos dará parâmetros para todos os outros, aqueles que iremos experimentar em nossa própria história, diminuindo, acrescentando, modelando, adicionando e subtraindo, a partir da matéria prima de nosso primeiro lar.

Gosto de caminhar ouvindo Chico Buarque. A trilha sempre traz “João e Maria”, ao vivo, numa versão linda que baixei na internet. Algo na letra, ou melodia, me toca de maneira inexplicável.

Chico Buarque faz parte da geração de meus pais. Meu pai, de gosto musical apurado, colecionava LPs e tinha fascínio especial pela canção “O que será…”, sucesso na década de setenta.

“João e Maria” nunca foi tema deles, mas talvez minha memória tenha filtrado a realidade como bem quis, juntando o refrão “E pela minha lei, a gente era obrigado a ser feliz…” aos bons momentos que observava em nossa casa, num tempo em que ainda não entendia nada acerca das relações amorosas entre adultos.

Jamais entenderemos por completo os entrelaçamentos mais íntimos entre uma mãe e um pai. Para os filhos, isso será sempre um mistério. Mas em algum momento que não sei precisar, imaginamos que entendemos. E que fazemos parte. E quando esse amor tropeça _ porque todo amor oferece riscos _ ficamos vulneráveis também.

Porém, é preciso coragem para amar e ser amado. Coragem para desbravar e permitir ser desbravado, estando sujeito a quebrar-se e rearranjar-se além de si mesmo.

Em qualquer narrativa, torna-se necessário perdoar nossos pais. Isso inclui aceitar suas falhas como parte do processo natural de qualquer pessoa, mesmo que ainda carreguemos a concepção infantil de que sejam nossos heróis.

Lidamos muito mal com o envelhecimento. Quando se trata de nossos pais, é ainda pior. Não temos como impedir a morte e o sofrimento. Mas achamos que podemos. E mais ainda, achamos que eles, nossos pais, podem.

Do mesmo modo que temos a tendência a acreditar que eles podem seguir se amando mesmo quando desistiram do compromisso que firmaram. Algo em nós, mais do que neles, se ressente dessa desistência.

O que se quebra não é o amor, mas o que nossos olhos quiseram enxergar nesse amor…

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Imagem de capa: Yulyazolotko/Shutterstock

Fabíola Simões

Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.

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