Hoje ela acordou com o pé esquerdo. O leite da manhã azedou. E na mesa do café os amores do passado tomaram seus lugares e por lá se demoraram. Ela resolveu não partilhar do pão amassado e pegou a chave do carro.

O carro não ligou. O telefone chamou, mas era uma daquelas ligações feitas por ninguém. Não era você dizendo bom dia. Ela foi trabalhar a pé. O tempo fechou. Baixou de manhã uma neblina branca. Ela não enxergava mais o outro lado da rua.

Chegou no trabalho atrasada. E os atrasos eram descontados. Um pouco mais e ela pagaria para trabalhar. No almoço o cartão não passou. Durante a tarde o caldo entornou. Voltou correndo para casa. Tirou a roupa. Entregou-se a um banho quente.

Deu ao corpo um pouco de conforto, mas logo depois o chuveiro queimou. A luz piscou e piscou. Fio velho tem dessas coisas. Ela quis ver Netflix, mas não entrou. A internet caiu, uma lágrima junto.

Perdeu a paciência com o dia. Você não ligou. Ela verificou as mensagens. Nenhum sinal seu. Onde você poderia estar? Prometeu chegar cedo. Iria junto dela pra cozinha, sabia do medo dela de fogão. Ela se sentou. Leu um pouco, mas você parecia estar nas entrelinhas.

Ela desejou o seu cheiro de perfume com suor. Ela queria dançar contigo. Assim colada no seu corpo. Uma dança como de antigamente em que a gente se entrega ao outro gostando de ir para o melhor. Ela desejou estar deitada em ti.

Ela se levantou. Pegou a vitrola. Colocou sobre o sofá. Girou o botão. Tec. A luz acendeu. Pousou a agulha no disco. Uma faixa qualquer. Ela fechou os olhos. Tinha muita neblina dentro do peito. Os olhos seguravam com força a saudade, mas sem querer a sua falta inundou a realidade. Ela pensou no seu beijo.

A campainha tocou. Deus ouve as vontades dos bons. Você estava tão lindo e sem que ela dissesse nada suas bocas se encostaram demoradamente e de olhos fechados vocês rodopiaram para dentro da sala.

O dia tinha sido ruim até você. O dia morreu virgem de cuidados, mas a noite seria de risadas no fogão, um novo chuveiro no banheiro e na cama muito, mas muito amor.

***

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Vanelli Doratioto

Vanelli Doratioto é especialista em Neurociências e Comportamento. Escritora paulista, amante de museus, livros e pinturas que se deixa encantar facilmente pelo que há de mais genuíno nas pessoas. Ela acredita que palavras são mágicas, que através delas pode trazer pessoas, conceitos e lugares para bem pertinho do coração.

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