Por Luisa Destri

Passei algum tempo me perguntando quando eu poderia dizer que parei de fumar. Só me atrevia a contar que estava sem fumar, ou estava parando. A sensação de fragilidade era imensa: a qualquer momento eu poderia escorregar, ceder a uma tragada – e então, no encontro seguinte com aquela pessoa a quem eu havia contado a novidade, seria o caso de admitir, cabisbaixa, com um cigarro na mão, Pois é, eu tinha parado, mas agora voltei.

Nessa mesma altura, porém, quando eu estava em um grupo de amigos fumantes, ficava ansiosa para que percebessem espontaneamente a mudança. Na minha fantasia, diriam, surpresos, Nossa! Você não está fumando! Nos encontros reais, jamais suportei a espera, e infalivelmente me adiantei: “Vocês não repararam que eu não estou fumando?”

O primeiro sinal do limite que eu procurava veio de um ex-fumante. Quando você parar de contar os dias em que está sem cigarro, aí acredito que você parou, ele disse. Fiquei um pouco enfurecida com a falta de confiança em mim, e quis me justificar: “Isso não quer dizer nada!. Você sabe que sempre fui assim, de marcar as datas, e infelizmente sou uma pessoa que sabe fazer contas.” No meu mais fundo, porém, uma delicada intuição nascia, querendo lembrar a data da minha primeira paixão. Estava certa de sabê-la… (Tão boa com o calendário, eu no entanto não lembrei.)

A decisão de parar e fumar surpreendeu a mim própria, e foi preciso conviver alguns meses com ela. Havia mais de dois anos, desde 2012, que eu vinha mudando a minha relação com o cigarro, a partir de um pedido do meu companheiro, não fumante, para que eu não fumasse dentro de casa. Trabalho em casa, e senti muita dificuldade para encontrar a concentração sem o apoio do cigarro. Em primeiro lugar, porque interpor dificuldades entre a vontade de fumar e a ação por vezes involuntária de acender um cigarro é ato penoso. Vai contra o hábito, contra o vício, contra a sensação de que é preciso sempre ceder às nossas vontades. Depois, porque decerto implicará redução no cigarro, o que fumantes e ex-fumantes sabemos todos ser um sofrimento inclusive corporal. Por sorte, havia a varanda, e eu poderia levar o livro com o qual estivesse trabalhando no momento. Tudo complicava quando se tratava de tarefas no computador – para resumir: foi uma época em que aumentei muito as horas de leitura.

Nos meses seguintes, dois fatores me fizeram dar o passo adiante. Minha mãe, fumante havia mais de 30 anos, teve um infarto. O ataque foi sério, embora não tenha deixado sequelas. Ela, que fumava dois maços de cigarro por dia, ouviu o alerta: saiu do hospital e não voltou a fumar. Entre todos os sentimentos, alguns contraditórios, despertados por uma situação assim, ficou para mim a admiração pela força de vontade dela.

O segundo estímulo veio novamente de meu companheiro: mais à vontade na nova rotina, por que não cigarro aumentar o intervalo entre um cigarro e outro? Até então a média devia ser de uma hora, mais ou menos; eu me esforçava para passar duas horas sem fumar, e de maneira alguma me permitia fumar antes de completar uma hora e meia do último cigarro.

Como estratégia, eu anotava no meu telefone, que estava sempre comigo nessa hora, o horário do cigarro. Não é difícil imaginar o quanto essa tirania sobre mim mesma me custou. Minha concentração durava em geral uma hora; para não fumar antes do prazo combinado com o meu próprio controle, inventava tarefas relacionadas ao cuidado da casa. Eu era capaz de trabalhar durante a primeira hora, mas depois precisava de outras distrações para resistir à vontade de fumar. Nunca a casa ficou tão limpa e arrumada, as roupas sempre lavadas, a comida feita… Minha atividade intelectual, por sua vez, começou a desandar.

Devo ter passado dois meses fumando menos de dez cigarros por dia. Eu andava ansiosa, havia começado a engordar e mal trabalhava na minha tese. Concluí que não valia a pena me torturar: quando decidisse parar de fumar, eu cortaria os cigarros; aquele modo velado de ir parando de fumar não funcionava para mim. E parar estava no meu horizonte, mas não ainda nos meus planos.

Embora não tenha lembranças claras, me arrisco a dizer que, por força de um mecanismo compensatório, passei um tempo fumando basicamente o dobro. Até que precisei voltar, agora com meu companheiro, para a casa de minha mãe. Eu havia me mudado de lá com a fumaça correndo solta: ela no escritório dela, eu na sala, ambas fumando e cada qual trabalhando no computador. Ao voltar, eu encontrava uma mãe ex-fumante e um lugarzinho reservado para mim na varanda.

A decisão de parar começou a se fortalecer em mim. Ou melhor, começou a se formar. Só me senti capaz de tomá-la, porém, quando, mais de um ano depois, entrevi a possibilidade de criar uma narrativa. Eu faria uma viagem de fim de ano, que não só me daria uma quebra na rotina como ofereceria o correlato objetivo perfeito: eu visitaria dois países diferentes, mas vizinhos, e efetivamente cruzaria fronteiras. Por orientação de minha médica, passei a frequentar o grupo de apoio da Unidade Básica de Saúde.

Este o argumento do meu roteiro: como a primeira parte da viagem incluía visita a vinícolas, eu seria ainda fumante e tomaria o vinho sem preocupações; na segunda, o cigarro ficaria para trás – como o vinho, provavelmente. Entre uma e outra haveria, além da fronteira, o adesivo de nicotina.

No meu último dia como fumante, fiz questão de satisfazer as minhas vontades com uma extravagância, um almoço em uma vinícola, com direito a degustações. Fumei sem me preocupar em controlar, mas sem acender um atrás do outro – de acordo com a vontade, em resumo. Para amenizar o sofrimento provocado pela ideia de deitar me sabendo não fumante, no dia seguinte fumei depois do café da amanhã. Alguns minutos depois, embarquei num ônibus, para uma viagem de 6 horas, em que cruzaria os Andes. Foi dentro desse ônibus que pedi ao meu companheiro que colasse o adesivo nas minhas costas. Pronto, era aquilo, já não poderia fumar. Chorei…

Demorei mais de uma semana para sentir as grandes dificuldades. Eu tinha vontade de fumar, mas a controlava bem, com recursos que, para além de medicamentos, fui encontrando segundo a necessidade (os mais valiosos eram certamente a água e o nori – a alga marinha usada para fazer sushi, que devorava com certa compulsão). Meu problema foi sobretudo emocional: até eu passar um insuportável domingo de grande irritação e muito choro, não entendi que aí estava o cerne da questão.

Nesse fim de semana, eu havia já tomado um susto. Meu companheiro vinha bravamente resistindo à Bill-Hicks-1 insistência com que eu dirigia a ele a irritação decorrente da falta de nicotina. Num sábado, porém, como era de se esperar, também ele se irritou. Desmoronei. Afastei-me dele, sentei-me sozinha na sala e me desesperei. Normalmente, após a briga, eu fumaria um cigarro, me acalmaria e passaria horas ou dias sem falar com ele. Naquele momento, eu não iria fumar, não queria insistir em irritá-lo, nem tinha condições psicológicas de suportar o jogo. Nada haveria a fazer senão enfrentar a situação e me acalmar, junto com ele.

Tenho vivido o processo como a mais dialética das minhas experiências – possivelmente porque parar de fumar, sendo a solução para um problema, não é entretanto algo livre de problemas. Nesse caso, a irritação se devia à falta da nicotina; mas só aprendi a enfrentar a irritação porque não a trataria com nicotina. Se parar de fumar, por um lado, criou uma situação problemática, não fumar permite romper aos poucos com um padrão que talvez não seja o melhor para mim mesma.

Parar de fumar é muito difícil. Ao menos no meu caso, mexe com o que eu sou e com a imagem que sempre fiz de mim mesma. Se cortar o cigarro é em algum nível negar um prazer a mim mesma (até porque a falta dessa satisfação gera respostas como frustração, irritação), ao procurar formas de lidar com o vazio deixado pelo rompimento com o vício, eu me pergunto – “fumar um cigarro agora vai melhorar algo?”. Quando escuto minha própria resposta, sou obrigada a reconhecer que convém fazer algo a respeito – a respeito do vazio, e não da tentação.

No caso do desentendimento com meu companheiro, minha saída foi encontrar o tom certo para começar a desfazer o incômodo gerado pela minha insuportável irritação. Em termos mais gerais, trata-se de desenvolver clareza e respeito em relação às situações e a mim mesma. A cada dia percebo um domínio em que não vinha ouvindo a minha própria voz – situações em que é preciso dizer não a várias solicitações exteriores, a fim de que eu possa escolher a mim mesma, apesar de todos os vazios.

Desde que parei, é verdade, venho me sentindo menos cindida, venho me sentindo mais próxima de mim mesma. Já não é tão fácil esconder-me das minhas verdades – já não há, afinal, fumaça para ocultar os meus desejos. Falo desejo em sentido forte: não a vontade de fumar, que essa vem, mas, desde que entendi que parei de fumar, rapidamente desaparece.

Agradeço o grupo antitabagismo da UBS Manuel Pêra: o médico responsável, dr. Rodrigo, a psicóloga Grazi e os colegas, pelo aprendizado na partilha.

O artigo foi publicado nesse espaço com a autorização da autora.

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