Quando saímos da caverna e caímos no mundo

Platão foi um grande filósofo e é dele o mito da caverna. De acordo com seu pensamento, nessa alegoria, nós seríamos como prisioneiros olhando para as paredes no fundo de uma caverna – cujo interior é iluminado por uma fogueira. E como tais, veríamos nas sombras projetadas nas paredes formas que para nós seriam tomadas como reais. Sobre elas nos debruçaríamos e por lá ficaríamos entretidos por, talvez, toda uma vida, acreditando serem as projeções a mais pura realidade.

Contudo se um dia um de nós se libertasse e caminhasse para fora da caverna, veria que as sombras projetadas eram de estátuas e que o mundo lá fora guardava a verdade e não a caverna, como pensávamos. A luz do sol, a natureza e todos os seres vivos nos encantariam e assim, dispostos, voltaríamos para a caverna para dividir a verdade com os nossos amigos prisioneiros, que certamente nos tomariam como loucos.

E essa caverna hipotética pode falar diretamente da nossa percepção acerca da vida e do mundo que nos cerca hoje. Dessa forma, pode existir em nosso viver um dia em que as engrenagens das coisas não rodem do jeito que sempre rodaram. Um dia em que o trabalho tão almejado já não realize mais, ou que a nossa casa pareça pequena e apertada para nós ou que o curso de graduação que escolhemos não nos toque como gostaríamos. Pode acontecer de acordarmos um dia e o nosso relacionamento não nos completar como no passado. Pode acontecer de vivermos um dia no qual a sombra das coisas deixe de nos apetecer.

Nesse momento, depois de um passeio além-mundo de projeções, ao decidirmos retornar à caverna e lá gastarmos nossa retórica, tentando conversar acerca da verdade e não da ideia de verdade que nos ensinaram, muitos pedirão que nos calemos, que fiquemos em nosso canto, falando apenas da superfície das coisas, como antes.

E eu na minha percepção de mundo arrisco dizer que, a quem passeou pelo exterior da caverna, se torna impossível aceitá-la novamente. Quem sai da caverna não consegue mais voltar a ela. Para quem sai da caverna, o “ficar lá dentro” passa a ser algo deveras doloroso. Quem vê a luz intensa do sol e depois volta para a escuridão, nota que a nova escuridão parece muito maior que a anterior.

Quem já não ouviu alguém dizer que ciclano ou fulano enlouqueceu e jogou tudo para cima?

Todos nós já ouvimos e vimos muitas pessoas deixarem um emprego rentável, pelo qual tanto lutaram, por uma carreira incerta. Muitos de nós vimos namoros serem desfeitos, namoros que antes pareciam perfeitos, porque um dia um dos enamorados acordou e viu que não era aquilo que realmente queria. Todos já conversamos com alguém que decidiu que determinado curso universitário não lhe era mais agradável.

Sair da caverna não é algo sossegado. Sair da caverna implica ver as coisas de outra forma, implica deixar as certezas por caminhos quase sempre incertos. Sair da caverna implica, muitas vezes, sentir dor, mas mesmo assim ser incapaz de ficar.

É inegável dizer que ficar na caverna é mais fácil e rotineiro, que ela, apesar de seus ideais monótonos, é mais segura, contudo a caverna passa a ser claustrofóbica para quem um dia tocou a luz da verdade.

No filme “Carol” há uma passagem em que a personagem Carol Aird conversa com a amiga Abby sobre tentar voltar para o casamento, assim como para suas convenções, mas de, no entanto, ser incapaz de suportar os compromissos como antes. Nesse ponto ela menciona o fato de não aguentar os mesmos almoços com geleias de tomate. Como se lhe fosse impossível engolir tais refeições. Nesse caso a personagem demonstra, de forma inconsciente, o fato de ser incapaz de degustar as situações incômodas como antes, no tempo em que não tinha saído da caverna.

Sair da caverna não quer dizer encontrar a felicidade, ser recebido com júbilo pelo mundo, ser compreendido. Comumente acontece o oposto, ao sair da caverna muitas vezes o que mais se encontra são pessoas a julgar e a buscar razões que se encaixem nas projeções da caverna.

Então aos nossos ouvidos chegam perguntas como: Mas por que se divorciou, se o cônjuge tudo lhe dava? Mas por que abandonou a casa confortável dos pais por um apartamento apertado e alugado em algum canto insalubre da cidade? Mas por que resolveu que a orientação sexual era outra se parecia animado com os namoros? Mas por que trocou a faculdade concorrida para viajar de mochila pelo mundo? Mas por que abandonou o emprego dos sonhos para abrir um negócio pequeno e incerto? Mas por que decidiu ser ou fazer isso ou aquilo se o status das coisas morava em outra parte?

A resposta para tudo isso tem a ver com a saída da caverna. Tem a ver com a busca pela felicidade. Tem a ver com a incapacidade de engolir a mentira quando da verdade um dia se alimentou.

O mundo não guarda certezas concretas e fórmulas irrefutáveis. O que há nele é um leque de escolhas a serem experimentadas. A vontade de experimentar a vida por si só é uma característica inerente daqueles que um dia se libertaram das pesadas amarras do sistema.

Existe sofrimento em ficar na caverna? Sim. Existe sofrimento em sair dela? Sim, também. Contudo é impossível diminuir de tamanho quando se ganha 5 cm em altura.

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Vanelli Doratioto é especialista em Neurociências e Comportamento. Escritora paulista, amante de museus, livros e pinturas que se deixa encantar facilmente pelo que há de mais genuíno nas pessoas. Ela acredita que palavras são mágicas, que através delas pode trazer pessoas, conceitos e lugares para bem pertinho do coração.