Quando a solidão aperta, quem tem lembrança boa não passa apertado

Imagem: RPBaiao / Shutterstock, Inc.

Eu não estou só. Estou sempre na companhia de uma saudade. Vê esse meio sorriso, esse olhar distante, esse jeito quieto? É a lembrança que me visita agora. Veio cheia de histórias e presentes, disposta a me fazer sentir alegria. Eu agradeço e retribuo.

Ser só é viver na companhia de nossas lembranças. É encher a casa de risos largos e saudades longas. Vozes familiares apontam de longe, cheiros carinhosos voltam no vento, gostos há tanto partidos retornam no pão com manteiga sem graça de um dia qualquer. Sentimentos chegam de manhã cedo como visita rara, desavisada, cheirando a banho, vestindo roupa de domingo.

Ficam conosco até a noite, ajudam no almoço, caminham ao nosso lado até o mercado, cochilam no sofá, falam do tempo. Quando partem fazem tanta falta que dão na gente um desejo de voltar as horas na marra. As lembranças também partem, sim. Lembranças têm vida própria.

Logo chegam outras, carregando sentimentos em sacolas coloridas de supermercado e carrinhos de feira. Quem vive só anda envolto em tanta saudade que quase nunca sobra espaço para mais ninguém. Não cabe mais ninguém na casa tão cheia de nostalgias alegres, gargalhando pelas janelas, jorrando felicidade eterna para um mundo triste.

Pessoas sozinhas nunca estão sós. Apartam-se do mundo em apartamentos silenciosos, casulos de quarto, sala e cozinha que abotoam em si mesmas como casacos ao fechar a porta e tirar os sapatos, sabendo que vão trombar nos corredores com lembranças vivas, prendas do tempo que nos liberta de obrigações corriqueiras e prazos curtos para sermos quem somos: bichos humildes feitos de saudade e esperança, sentimentos e lembranças se abraçando com carinho, como velhos amigos de infância comovidos de gratidão e de amor na alegria do reencontro.

Ahh… quando chega essa hora eu sinto saudade de tanta coisa, tanta gente. Ficou tudo aqui, guardado numa tardinha que jamais passou, com o sol se pondo para sempre sobre nós e os nossos sonhos. Quando a solidão aperta, quem tem lembrança boa não passa apertado.

André J. Gomes

Jornalista de formação, publicitário de ofício, professor por desafio e escritor por amor à causa.

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