Somos seres livres. Essa é uma premissa irrefutável. No entanto, é sabido que existe a possibilidade de sermos influenciados e condicionados, isto é, de não exercermos a nossa liberdade primordial. Esta, todavia, não significa, necessariamente, escolhas corretas e moralmente aceitas. Diante disso, devemos considerar uma problemática: até que ponto vale, ainda que seja para um bem maior, abdicar da liberdade de escolha?
Esse problema é tratado no filme “Laranja Mecânica” (A Clockwork Orange) de Stanley Kubrick, inspirado na obra homônima de Anthony Burgess. No filme, um jovem chamado Alex e sua gangue de “drugues” praticam todos os tipos de violência, incluindo espancamentos, estupros e assassinatos, em uma Londres distópica. Movidos por puro prazer, ou seja, sem motivações aparentes para cometer tamanha violência, os jovens saem todas as noites praticando o que chamam de “ultraviolência”. Esse comportamento não se reduz à gangue de Alex, sendo praticado por outras gangues formadas por jovens.
Fica nítido, dessa forma, que a “ultraviolência” é um traço marcante daquela sociedade, em que jovens, sob efeito de drogas, libertam toda a violência contida nos seus corpos. Não há um motivo para o que fazem, eles simplesmente fazem porque sentem prazer. O comportamento, sobretudo de Alex, não nos deixa dúvida de que aquela violência é vista como um espetáculo ou, como chamam, “horrorshow”. As suas características cultas, como a sua apreciação por música clássica, principalmente Beethoven, enaltecem o caráter de show ao horror que praticam.
Em uma das suas investidas, Alex é pego pela polícia e condenado a 14 anos de prisão. Preso, ele descobre que estão desenvolvendo um método que promete curar o indivíduo de sua maldade, tornando-o incapaz de praticar qualquer ato de violência. O nosso protagonista é submetido ao tratamento, chamado de “Método Ludovico”, e tem, como prometida, a sua cura, de tal modo que está apto a retornar à sociedade. Ao retornar à sociedade, Alex sofre da mesma violência que praticara, sem que possa retribuir, posto que, todas as vezes que pensa ou tenta cometer algum ato violento, ele sente fortes náuseas que o impedem de fazer qualquer coisa.
O texto até aqui serve apenas para ambientar a história (o que, na maioria das vezes, nem faço, pois prefiro ir direito ao cerne do problema). A problemática se desenvolve em torno da pergunta inicial, ou seja, o condicionamento violento praticado pelo Estado em Alex é satisfatório? Produz resultados benéficos? Obviamente, o comportamento de Alex é reprovável, mas a violência não se restringia somente a ele. Estava na sociedade como um todo, bem como no Estado, já que o método utilizado em Alex também era “ultraviolento”.
Sendo assim, percebemos que, em uma sociedade preocupada exclusivamente em punir, pouco importam as motivações do indivíduo, se ele faz de forma espontânea ou não, o importante é não desrespeitar a lei, mesmo que através da criação de robôs morais. Como diz o Ministro do Interior, o Estado não está preocupado com éticas elevadas, mas apenas com a diminuição da criminalidade. A importância está, portanto, na funcionalidade e não na escolha moral do individuo, na sua motivação para não fazer o mal.
Desse modo, temos o homem mecânico, condicionado e programado para seguir a vontade do Estado. Alex deixa, assim, de ser um homem propriamente dito, pois deixa de ter o poder de escolha e passa a ser a laranja mecânica, incapaz de seguir naturalmente seus instintos. Percebam que a vontade de fazer o mal ainda está presente no nosso jovem “herói”, esta apenas está impossibilitada de ser executada pelo condicionamento que sofrera. Em outras palavras, o fato de ele não ser capaz de cometer a “ultraviolência” é bom para o indivíduo e para a sociedade, mas, na medida em que ele não a pratica tão somente por ter sido programado, passamos a questionar o valor da sua ação, assim como a sua humanidade.
Essa visão é corroborada pelo padre da prisão, que não estando convencido da “cura” de Alex, quando diz – “A bondade vem de dentro, (…) quando um homem não pode escolher, deixa de ser homem”. Ou seja, há uma forte crítica ao método utilizado pelo Estado, que retira o livre-arbítrio e impede o indivíduo de agir por vontade própria, pois, na proporção em que o nosso jovem “Deixa de ser um malfeitor, (…) deixa também de ser uma criatura capaz de escolhas morais”.
Dito de outro modo, o método utilizado não torna um homem bom. Torna o homem inapto para o cometimento do mal, o que é bem diferente. Assim, questionamos o valor das ações de Alex, do homem mecânico, do robô moral, programado para não fazer o mal, mas tão inapto quanto antes para fazer o bem. Será que, naquelas condições, ele era melhor do que antes? Ou, nas palavras do padre – “Será que um homem que escolhe o mal é talvez melhor do que um homem que teve o bem imposto a si? Questões difíceis e profundas, pequeno 6655321”.
Não se trata de ignorar a extrema violência que Alex cometia, mas de discutir o valor de uma ação condicionada, contraditória à vontade do indivíduo. A violência da trama não é construída como um elemento qualquer, um atributo de violência por violência, mas é uma metáfora que demonstra a violência de um poder autoritário, controlador e condicionador. Como também não devemos negar que a violência é a demonstração, na obra, de que o homem é violento e difere muito do “bom selvagem” rousseauniano.
Entretanto, se considerássemos apenas o último fator, de que a obra é apenas uma demonstração pessimista da natureza violenta e perversa do homem, todas as discussões que giram em torno do filme seriam incabíveis. E elas não só cabem, como são o mote central da história. Ou seja, a liberdade do indivíduo não pode ser extirpada, pois os seus desejos não podem ser suprimidos. O condicionamento para que o indivíduo não faça o mal age somente na ação final, mas não modifica os meios, as motivações que possui. Além do mais, o condicionamento feito pelo Estado se dá por meio de extrema violência, que, por ser de ordem psicológica, acaba não sendo equiparada como equivalente às atrocidades cometidas por Alex. Todavia, são equivalentes, por isso vejo a violência física do filme também como uma metáfora para a violência psicológica praticada pelo Estado, já que, sem fazer esse elo, torna-se difícil equiparar as duas violências.
Sendo, portanto, iguais, há de se considerar a condenabilidade do condicionamento feito pelo Estado, uma vez que a técnica utilizada é equivalente aos espancamentos e estupros cometidos pelos “drugues”. Assim, a trama, como uma boa distopia, critica ferozmente (e bem) governos autoritários que querem condicionar homens e transformá-los em autômatos, em laranjas mecânicas. O fato de esse condicionamento ser feito em indivíduos inescrupulosos como Alex, que promovem o mal por bel-prazer, não anula a natureza autoritária da medida.
A grande sacada da obra é demonstrar que, independentemente do condicionamento construído, não há a possibilidade de “produzir” homens bons, como se estes fossem biscoitos. Ser bom é uma decisão e não pode ser produzida pela vigilância, punição e condicionamento. Os homens devem, de forma espontânea, viver de forma ética, respeitando os limites do outro. Qualquer programação feita no indivíduo é incapaz de mudar as suas vontades, fato que fica mais claro no filme, visto que neste não há uma redenção do protagonista.
Laranja Mecânica é uma crítica a formas autoritárias de governo que pretendem despersonalizar as pessoas, à extrema violência presente na nossa sociedade, que, para ser entendida, deve ser expandida para além das atrocidades cometidas por Alex, como os preconceitos, os desrespeitos éticos (ou o jeitinho brasileiro não é uma violência?), a falta de empatia e compaixão etc., e, sobretudo, a dificuldade que o homem tem para fazer o bem, sem que, para isso, sofra de violência que o transforme em uma marionete, um autômato ou, como genialmente Burgess escreveu, uma Laranja Mecânica.
Imagem de capa: Reprodução
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